Os Atores do Teatro da Vertigem (Miriam Rinaldi)

O Que Fazemos na Sala de Ensaio

 

Os Atores do Teatro da Vertigem (Miriam Rinaldi)

 

Começamos o texto com uma pergunta, pois ela significa para nós o início: o que nos faz atores do Teatro da Vertigem?

Somos um grupo. As afinidades que nos mantêm juntos são de ordem ideológica, estética e principalmente afetiva, pois de outra forma dificilmente permaneceríamos unidos, seja à causa, seja às pessoas.

 

O que me move é a paio por esse trabalho - é a certeza de que, daqui pra frente, carrego toda essa paixão comigo. [Luciana Schwinden]

 

O resultado de nosso trabalho só é possível porque é tribal, porque é lento, porque busca uma transformação pessoal; e, por mais que os choques inaugurem mudanças, elas não acontecerão se não houver espaço interno, gota a gota de nossos dias, num processo que não é o que podemos chamar de eficiente.

Desde seu início, em 1991, a pesquisa do grupo estava concentrada no movimento expressivo do ator. Só depois veio a idéia da criação e montagem de um espetáculo. Esta é uma marca que perdura até hoje: entrar em sala de ensaio sem saber se ao final dos encontros se terá material suficiente para a criação de um espetáculo. Entramos assim: como quem entra no escuro, nos lançando como crianças que brincam de cabra-cega. Medo e alegria inauguram o processo. O risco e a crença de que toda criação não deixa de ser um mergulho para dentro.

 

Durante o processo de criação de Apocalipse 1,11, deparei com questões que me acompanham no decorrer da vida. Me tornei um vulcão em erupção constante: meus segredos, minhas conquistas, emoções, frustrações, meus desejos e fantasias escorriam descontroladamente. A instabilidade e a liberdade faziam parte de meu processo de autoconhecimento. [Roberto Audio]

 

Como grupo, identificamos nossa prática como Processo Colaborativo. Nele, cada ator é simultaneamente autor e performer. Há também a liberdade de participar em outras áreas de criação, como dramaturgia, figurino, som, iluminação, cenografia, assim como no material já criado anteriormente por um companheiro em sala de ensaio, somando soluções em infinitas possibilidades. O processo colaborativo é a expressão do diálogo artístico, num jogo de complementaridade.

 

Do ponto de vista dos atores, o processo colaborativo nos dá a possibilidade de exercer a função de artista. O ator se torna criador da obra. [Vanderlei Bernardino]

 

Durante o processo de criação, estamos livres de proibições. Não há nenhuma restrição à forma ou conteúdo daquilo que se quer trazer para a cena, com exceção da... sinceridade. É o que chamamos de depoimento pessoal. Somos estimulados a descobrir em nós o que isso significa.

 

O depoimento pessoal é a possibilidade de o ator se colocar na obra de uma forma tanto consciente como inconsciente. Ele dá margem para o ator/artista fazer de seu ofício uma ferramenta de auto-análise e de transformação. [Vanderlei Bernardino]

 

Depoimento pessoal é sua colocação como ser humano, como cidadão e artista. Muitos depoimentos viraram personagens, como a Talidomida do Brasil. Eu queria falar de uma coisa pessoal e fiz aquela menina torta. É deixar que sua experiência vire arte, seja manipulada. [Mariana Lima]

 

O depoimento pessoal não precisa necessariamente se fixar em situações vividas pelo artista; também situações análogas - o outro, a rua - são fontes de inspiração. [Luciana Schwinden]

 

Sou negro e interpreto um negro humilhado. Essa personagem me oferece a dimensão de meu papel como artista. As palavras do texto me fazem estar permanentemente vivo, como se a cada espetáculo se reafirmasse uma condição que precisa ser mudada e de que nenhum negro, seja qual for sua classe social, está livre. [Luis Miranda]

 

Não somos atores de todos os papéis, mas de alguns. E isso tem a ver com o conhecimento de nós mesmos. Não camuflar nossas características, mas ampliá-las, num processo de auto-afirmação. Não negar defeitos: assumi-los.

O processo de criação de Apocalipse 1, 11 é tomado por uma febre de ideias, uma criação desesperada que não para de jorrar. Estamos preocupados não com o acabamento da cena, mas em como ela sintetiza os pensamentos, desejos, fantasias e lembranças daquele que a criou. Um verdadeiro embate psicológico, em que cada ator desafia seu limite, mais e mais, para poder dar um passo à frente, se libertando das falsas ideias, dos preconceitos, dos limites já estabelecidos. Adquirimos assim a habilidade de estar em risco. Com o tempo, surgem as personagens, seu desenho, seu preenchimento, e a consequente técnica que nos assegura o risco diário.

 

A falta de pudor, proposta pela direção e abraçada pelos atores, faz com que toda dificuldade seja motivadora. Às vezes era muito dicil ver um amigo em tamanha exposição, e, por isso mesmo, me expor ao extremo se tornou uma questão de respeito. Nos apoiamos nos silêncios ou em brincadeiras, para aprender a lidar com o desconhecido. Percebia que a cada dia o grupo se tornava mais forte, à medida que trabalhávamos com nossas fraquezas. [Roberto Audio]

 

A maneira pela qual cada ator chega à sua personagem também é uma das características desse processo de construção dramatúrgica. Alguns deles estão presentes no texto bíblico, como no caso de João, do Anjo e da Besta, em Apocalipse 1, 11. Outros nascem através da personificação de um estado ou coisa, como Babilônia, que é uma cidade e que no espetáculo aparece como uma prostituta. Ou mesmo o Juiz, que encarna a ideia de um Deus punitivo, do "Antigo Testamento". Outras aparecem extrapolando o texto bíblico e respondendo às necessidades do discurso artístico, como no caso dos Palhacinhos. Não há uma distribuição-das personagens. Na verdade, são elas que escolhem seus atores. Através do diálogo com a direção e a dramaturgia, a criação das personagens nasce da aproximação entre universo pessoal e texto escrito, estabelecendo um paralelo entre ficção e realidade.

A criação das personagens também veio se modificando ao longo dos anos de pesquisa. Em O Paraíso Perdido, não havia distinção nominal entre elas. Os atores representavam arquétipos, entidades, anjos sem nomes próprios e com ênfase no movimento coral.

A partir de uma necessidade dos atores, a dramaturgia buscou personagens mais delineadas, com características e trajetórias próprias. Em O Livro de , todas as personagens do poema bíblico aparecem no espetáculo, algumas sendo ampliadas, outras criadas a partir de uma descrição simples, como o caso da mulher de , que ganhou o nome de Matriarca.

 

Há sempre a possibilidade de experimentação de tudo. Em O Livro de J ó, a gente não criou o texto, como em Apocalipse 1, 11, mas todos os atores experimentaram todos os personagens. A solução de um problema é a somatória de todas as contribuições. [Sergio Siviero]

 

É dessa mistura do sagrado e do profano, do privado e do coletivo, do mais íntimo e do mais exposto do humano, que surge o Teatro da Vertigem. A encenação em espaços não-convencionais talvez seja nossa característica estética mais marcante. A apresentação em lugares impróprios para o aconchego do público ou para o conforto dos atores abre outras possibilidades, que reinventam o teatro não apenas como entretenimento, mas como experiência. A relação entre espaço interno (corpo do ator) e espaço externo (presídio, hospital ou igreja) vai além do que é considerado técnica profissional.

Em sala de ensaio, trabalhamos com a ideia de um lugar. Há uma exploração do imaginário, das lembranças e fantasias em torno da ideia. Quando entramos no espaço real, exploramos as possibilidades de trajetórias narrativas, adaptando a cena ao espaço. Antes, porém, o ator apropria-se da arquitetura do espaço, sua materialidade, suas dimensões, sua atmosfera.

Contudo, há outras coisas. Ao entrarmos num espaço abandonado, entramos em um novo corpo. Conhecemos sua história como quem abre um livro de memórias, um diário. Ficamos suspensos, como um grupo de arqueólogos, reconhecendo os vestígios, investigando rastros; inevitavelmente, deparamos com forças que nem sempre controlamos. Sabemos que os teatros também têm seus "fantasmas", mas sabemos também que aquele é o espaço concedido para o espetáculo. Que permissão temos nós de perturbar o sono de um hospital enfermo? Ou o silêncio abafado das celas de uma prisão? O direito de que a nossa entrada lhes abra uma porta de saída. Talvez esta seja nossa função ali, pois há muito de inexplicável em nossas visitas.

 

Havia um canto, a UTI dos bebês, que simplesmente nos arrepiava quando entrávamos lá. Era o lugar mais escuro, mais estranho e pesado de todo o espaço, mais até que a sala de cirurgia. Naturalmente, foi o espaço que concentrou e conservou maior carga de tensão. São coisas invisíveis, mas nem por isso inexistentes. E acredito que isso modificou a maneira que nos preparávamos para entrar em cena, como também para deixá-la. Durante toda a temporada, podíamos sentir como o espaço nos influenciava e como nós o purificávamos. A maternidade tinha um cheiro que era anterior a qualquer simulação ou truque cênico. [Miriam Rinaldi]

 

A relação com o público é consequência de uma situação híbrida em que representação e realidade se confundem. Ampliando a relação-padrão do teatro tradicional, onde espectador e ator estão dispostos um de frente para o outro, nós, em nossos palcos móveis, nos sentimos observados por todos os lados. Não há como se esconder. Estamos, mais uma vez, expostos.

 

Estar muito próximo do público não nos permite mentir, temos que estar presentes, inteiros, usando os estímulos momentâneos a favor da cena. Essa proximidade nos permite realmente dialogar com o espectador, olhar nos olhos, na alma deles, e, com isso, conseguir um espelho daquilo que somos, ou de como sentimos as coisas. [Joelson Medeiros]

 

A apresentação em espos não-convencionais estabelece uma nova relação não com o público, mas também com os objetos cênicos. s transformamos seu uso funcional e imprimimos outros significados ... - há sempre a possibilidade de mutação da funcionalidade das coisas. A falta de coxia, de cortina, a proximidade com o público, me faz sentir em comunhão, numa relação que não é de mão única. [Sergio Siviero]

 

Esse limite tênue entre ficção e realidade, entre verdade e representação, cria uma ilusão que confunde o espectador. Significados se sobrepõem como se houvesse uma máscara embaixo de outra máscara, embaixo de outra máscara. Ficamos perplexos ao descobrir que a máscara era apenas a reprodução da face deformada e feia da realidade. A cara libertadora da verdade.

 

O público, que lotou nosso ano e meio de temporada em O Livro de Jó, saía voluntariamente de suas casas para ir a um hospital, assistir a uma peça; muitos sucumbiram e tombaram ao chão diante daquele sangue feito com groselha, Karo e Nescau. Acredito que o Teatro da Vertigem caminha nesse estreito limite entre a realidade e a representação. [Miriam Rinaldi]

 

Na interpretação dos atores, foi identificado um traço visceral que veio a ser chamado de hiper-realismo. Para nós, no entanto, isso é a consequência de todo o processo de criação.

 

O hiper-realismo existe quando tanto intérprete quanto espectador são colocados no limite entre a ficção e a realidade. Atuar em um espaço onde existe carga emocional exige, a todo tempo, uma busca pela verdade absoluta e a fuga de uma simples representação. A utilização do depoimento pessoal também reforça esse contato do ator com aquilo que há de mais real e verdadeiro na sua crião. [Vanderlei Bernardino]

 

O hiper-realismo tem a ver com a proximidade que o tema tem para nós e que temos em relação ao público; é um termo bastante revelador. Distorcemos a realidade, tão próximos estamos dela. A lente aumenta tanto que sai do foco. [Mariana Lima]

 

Não sabemos se num próximo trabalho a temática será bíblica, ou mítica. Há, contudo, o desejo de buscar, de refletir sobre nossa condição, nossa existência. Apesar de possuirmos crenças diversas, nos identificamos com uma procura individual intensa, seja intelectual, seja espiritual, seja emocional. Acreditamos que nosso ofício nos oferece a possibilidade de ampliar nossa consciência de nós mesmos.

 

A forma que se trabalha, a entrega, a fé dos atores ... fé no sentido de acreditar que este trabalho, com todas as suas dificuldades, é essencial para alimentar nossa alma de artista. Há uma necessidade de transformação que, partindo do pessoal, modifique aqueles que entrem em contato com nossa busca. [Joelson Medeiros]

 

Dez anos nos ofereceram a oportunidade de rever nosso caminho. Estamos felizes. Queremos continuar, seguir em nossas buscas. Há muito o que fazer.

 

***

 

Os procedimentos de criação em sala de ensaio só se afirmaram com Apocalipse 1,11. A improvisação é a principal fonte para a construção dramatúrgica. Em linhas gerais, o trabalho dos atores é caracterizado por quatro qualidades de exercício: a vivência, a improvisação, os workshops e as visitas.

            A vivência está mais próxima do conceito de laboratório teatral: depois de lançado um tema, o ator vive a situação proposta, imaginando-a. Seu estado não é passivo, pois ele interage com as imagens que afloram em sua mente. Não há relação entre os participantes. A investigação é individual, e seu objetivo é provocar a sensibilidade, trazendo à tona fantasias, lembranças e desejos sobre o tema em questão. Sua duração é de 40 minutos em média. A vivência estimula a criatividade e proporciona um aquecimento emocional para as atividades posteriores.

 

Chego à sala de ensaio. Deixo meus objetos pessoais. Fecho os olhos. Aos poucos, tento livrar-me das imagens cotidianas. Me preparo para um grande mergulho interno. A vivência é um importante estado de concentração. Sou conduzida por uma voz que me alimenta de estímulos. Embarco sem rédeas para um lugar desconhecido. A imaginação, assim como o corpo e a voz do ator, precisa ser treinada; precisa estar aquecida e viva. Aos olhos de outras pessoas, esse exercício pode parecer um jogo esquizofrênico. Aos olhos de um artista, ele é mais um importante recurso da pesquisa. [Luciana Schwinden]

 

A escrita automática é usada como fechamento das vivências. São distribuídos papel e caneta para os atores. Em apenas três minutos, ou menos, eles respondem a uma pergunta/tema que, na maioria das vezes, assume função de mote, repetido a cada início de frase; por exemplo, "eu não peço desculpas ... ", ou "eu julgaria ... ".

 

A escrita automática é como uma confissão. Fizemos listas do que havia de melhor e de pior em nós mesmos. Ressuscitamos mortos, desenterramos tesouros, coisas que a gente pensa que esqueceu. [Miriam Rinaldi]

 

Diferentes materiais servem de estímulo para as improvisações. Utilizam-se perguntas ou palavras-chaves, um texto-base (a Bíblia), fotos, imagens impressas, relatos e matérias de jornal. As improvisações são realizadas em grupo ou individualmente, com espaço de tempo que pode variar de um a 20 minutos.

Já o workshop, apesar de também ser uma cena improvisada, difere pelo tempo despendido. Na criação do texto de Apocalipse 1, 11, os workshops levaram um dia para serem elaborados; sua preparação representa a resposta cênica de uma pergunta lançada. No workshop, mesmo que os demais atores participem, a criação é sempre individual.

Tanto nas improvisações como nos workshops, podem ser empregados recursos cênicos como figurinos, adereços, iluminação ou qualquer outro elemento. Um workshop pode ser um texto escrito e lido pelo ator, uma dança ou uma instalação. Qualquer forma de expressão pode ser utilizada.

 

O workshop é um momento de absoluta liberdade de criação, em que o imaginário pode e deve construir tudo. Nossos sonhos, nossas fantasias, nosso mundo infantil. É o momento de maior prazer. É o traço mais íntimo de nossos pincéis, o recado mais puro de nossas almas, o sopro mais forte de nossos mortos. [Sergio Siviero]

 

Durante o processo de criação do texto de Apocalipse 1,11, a cada dia eram apresentadas mais de dez cenas, somando, aproximadamente, 30 horas de cenas gravadas em vídeo.

As visitas acontecem em duas etapas distintas: na aproximação temática e na construção das personagens. Na primeira, são escolhidos lugares que têm relação com a temática. A partir dessas visitas, os atores elaboram cenas que expressam a atmosfera, uma pessoa vista ou qualquer outro aspecto que os tenham marcado. Na segunda etapa, já com as personagens definidas, cada ator tem uma lista de lugares vinculados às características de cada papel, para investigar vestimenta, objetos pessoais, tempo interno e externo, linguagem verbal e gestual ou qualquer outro aspecto que o ajude na construção e preenchimento das personagens. As visitas proporcionam uma investigação objetiva da realidade das personagens, uma vez que se parte da observação do meio em que vivem.

 

A gente saía para lugares a que não era fácil ir. Delegacia, Detenção, Boca do Lixo, Cracolândia. O importante nessa pesquisa de campo é o material humano. Quem são as pessoas que estão ali? O que elas estão buscando? Para mim ... sempre me bate que eu poderia estar ali. Essa coisa à margem parece que não passa pela tua vida. Por que buscar ali? O que tem ali? O que tem ali que eu compartilho? O que tem ali em essência que está em mim, que está na sociedade, que está neste mundo hoje? Essas pessoas que estão à margem, suas questões são as mesmas que temos. O que elas estão querendo é o mesmo que a gente.[2]

 

 

 

 

 

 

Texto extraído de:

NESTROVSKI, Arthur (apresentação) – vários autores. Trilogia bíblica. São Paulo: Publifolha, 2002.



[2] Entrevista concedida a Mario Santana pelo ator Vanderlei Bernardino. Em: Sala Preta, revista do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, ano 1, n.1 (2001)