Site Specif - BR-3 (ANTÔNIO ARAÚJO)

ARAÚJO, Antonio. A Encenação no Coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo. 2008. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, USP, Brasil. (p.142-5)

 

Excerto da tese onde Antônio Araújo discorre sobre a apropriação e o uso do espaço em “BR-3”:

 

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A ocupação cênica do rio também foi bastante problemática. De todos os espaços utilizados pelo Vertigem este foi o que apresentou os maiores desafios. Comparado às outras montagens, por exemplo, foi onde ensaiamos o maior tempo antes da estreia. Trabalhamos cerca de oito meses in loco. No início, ensaiávamos apenas um dia por semana no rio e os outros quatro, na Casa N°1. Depois, após conseguirmos a autorização do DAEE, os ensaios passaram a ocorrer diariamente lá - salvo em dias de chuva ou de outros eventuais problemas (quebra da embarcação; excesso ou falta de volume d'água no leito do rio, etc.).

Os procedimentos metodológicos de exploração do espaço foram semelhantes àqueles de Apocalipse, entretanto, com obstáculos redobrados. Primeiramente, tínhamos apenas um barco para as atividades, o que limitava os deslocamentos e o ensaio simultâneo de várias cenas. Depois, surgiu a questão da dificuldade de comunicação entre diretor e atores. Para falar com os intérpretes nas margens, por exemplo, a direção teve que lançar mão de megafone, pois a voz alta ou o grito não funcionavam em um espaço aberto e ruidoso. Um pouco mais tarde, criou-se um sistema de mediações: o diretor falava por meio de rádio com o seu assistente, que estava na margem, próximo aos atores. Esse assistente, então, transmitia-lhes o feedback da direção. O tempo consumido nesse "telefone sem fio", associado às inevitáveis distorções e má compreensão do que era solicitado, ajudavam a tornar o processo de ocupação ainda mais lento.

Além disso, os ensaios estavam sujeitos às condições climáticas. Se chovesse, não havia trabalho, mesmo que todos já estivessem lá, aquecidos e com figurino. Inúmeros ensaios foram cancelados, enquanto outros, interrompidos no meio. Às vezes, a chuva não ocorria no trecho urbano do Tietê, ocupado pelo grupo, mas sim na cabeceira ou nascente. Porém, isso já era suficiente para provocar o aumento do volume de água e o consequente alerta de perigo, causando, inevitavelmente, o cancelamento do trabalho. Muitas vezes, o motor do barco fundia ou estragava, e tínhamos que ser rebocados por outra embarcação. Ou seja, perdíamos horas esperando a vinda do socorro e, em geral, o ensaio daquele dia - e dos próximos - costumava ficar comprometido até a finalização do reparo do motor.

Como existiam obras de engenharia civil sendo executadas nas margens e leito do Tietê, houve diversas situações de impedimento dos ensaios. Por exemplo, quando ocorriam explosões dentro da água, para o desassoreamento ou rebaixamento da profundidade do rio, a colocação dos explosivos e dinamites podia ocupar um dia inteiro. Isto acarretava o cancelamento total do ensaio ou, no mínimo, uma mudança emergencial no cronograma da peça. O problema é que só sabíamos, na hora, ao chegarmos para trabalhar, os entraves do dia. Por mais que o grupo solicitasse uma agenda semanal das atividades das obras, não havia nenhum esforço por parte das empreiteiras em avisar, com antecedência, dos eventuais impedimentos.

A bem da verdade, éramos vistos como estranhos ali dentro, e muitas vezes sofremos boicotes e perseguições de engenheiros e operários que lá trabalhavam. Houve falsas acusações - por exemplo, em relação a supostos desrespeitos às normas de segurança - que nos custaram dias de explicação ou retratação à Secretaria de Recursos Hídricos ou ao DAEE. À parte qualquer teoria conspiratória, não restava dúvida de que algumas empreiteiras tentaram dificultar a realização do espetáculo.

Fruto desse boicote velado, toda semana era comum aparecer alguma nova condição para continuarmos no rio. Ora, era a necessidade de um técnico de segurança que acompanhasse os ensaios, ora, era a inesperada proibição de um local que já vinha sendo utilizado cenicamente. Ou ainda, para nossa estupefação, alguma descabida prerrogativa moral, como, por exemplo, as atrizes não poderem conversar com os marinheiros ou operários.

Após a construção do barco dos espectadores, denominado Almirante do Lago, a situação melhorou um pouco. Foi possível instalar um sistema provisório de som - com o qual, por meio de microfone, o diretor conseguia se comunicar diretamente com os atores -, além de se tornar factível a marcação das cenas no espaço de acordo com o ângulo de visão que os espectadores teriam durante o espetáculo. Graças à presença do Almirante do Lago, o grupo passou a contar com dois barcos de apoio, o que auxiliava na realização dos ensaios simultâneos.

Porém, uma situação traumática estava na iminência de irromper. Segundo a empresa proprietária da embarcação principal, a navegação durante a peça poderia ser realizada em qualquer sentido, tanto no fluxo quanto no contra fluxo do rio. De acordo com sua avaliação, o "potente" motor do Almirante do Lago seria capaz de parar o barco em ré ou de fazer qualquer manobra complexa necessária. Esta informação, é importante ressaltar, foi confirmada e reconfirmada várias vezes.

Tomando como baliza a diminuição do tempo de duração do espetáculo, o grupo optou pela navegação no sentido do fluxo do rio, pois ela pouparia vários minutos de deslocamento, além de proporcionar uma passagem mais rápida de uma cena a outra. De posse de todos esses dados, passamos várias semanas explorando e implantando as cenas da peça de acordo com essa orientação fluvial. Chegamos, inclusive, a correr a peça inteira seguindo o sentido do fluxo do rio, isto é, partindo da Ponte da Anhanguera e desembarcando no Cebolão.

Contudo, quando o Almirante do Lago começou finalmente a navegar no Tietê, a situação revelou-se completamente outra. Além da pouca velocidade e do motor que fundia e quebrava frequentemente, o barco não conseguia ficar parado no fluxo do rio. A empresa passou dias tentando, infrutiferamente, resolver a questão. Ao final, reconhecendo a irreversibilidade do problema, comunicou ao grupo a necessidade de inversão do sentido da peça no espaço.

O impacto de tal notícia causou um trauma no elenco. Vários atores - justificadamente - caíram aos prantos, pois viram todo o trabalho árduo de semanas ir, literalmente, por água abaixo. A realidade, nua e crua, era que teríamos que começar do zero novamente. Porém, não havia outra saída. Fomos obrigados a remarcar a peça inteira, agora no contra fluxo, isto é, partindo do Cebolão e desembarcando na Ponte da Anhanguera. Sem dúvida, este foi o pior momento no processo de ocupação espacial do Tietê.

Contudo, passado o trauma e a crise dele decorrente, descobrimos que, em termos de possibilidades cênicas, o sentido do contra fluxo era muito mais fecundo. Uma vez mais, os limites à liberdade de criação mostraram-se inspiradores. Tal percepção trouxe novo alento aos criadores, o que determinou que a remarcação espacial fosse realizada em um tempo de ensaio proporcionalmente menor.

A encenação, por sua vez, logrou definir um conceito de utilização do espaço. As cenas do texto situadas em Brasília seriam encenadas ao redor dos viadutos, onde o aspecto de monumentalidade ficava evidenciado. Utilizamos, para tanto, o Cebolão, a ponte da CPTM e o viaduto da Anhanguera. Já as cenas em Brasilândia ocorreriam embaixo de pontes, no sentido de acentuar o elemento de precariedade. Em função disso, as encenamos sob a Ponte dos Remédios e sob a ponte Atílio Fontana. Por fim, aquelas que se situavam em Brasiléia seriam apresentadas ao ar livre, nas margens e leito do rio, reforçando o aspecto de "natureza" - salvo a cena do Seringal Egito; que demandava um local fechado.

Um grande desafio para a encenação concernia à criação de focos de atenção num ambiente marcado pela dispersividade. Além dos recursos de luz - via recorte do espaço - e de som - via uso de microfones, que auxiliavam na compreensão do que era dito - a posição do barco principal e a sua distância das margens era muito importante. Um posicionamento errado poderia comprometer a percepção visual, prejudicando a fruição da cena. Além disso, o excesso de afastamento do barco alargava em demasia o campo de visão do espectador, o que desviava a atenção e "esfriava" a experiência. Daí os vários ensaios com os marinheiros e capitães das embarcações, a fim de que eles compreendessem o rigor exigido e dominassem tecnicamente as manobras. Fundamental também, nesse sentido, foi o papel desempenhado por Eliana Monteiro, na coordenação da logística de cena.

 

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