Site Specif - Jó (ANTÔNIO ARAÚJO)

ARAÚJO, Antonio. A Encenação no Coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo. 2008. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, USP, Brasil. (p.100-1)

 

Excerto da tese onde Antônio Araújo discorre sobre a apropriação e o uso do espaço em “O Livro de Jó”:

 

 

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O hospital, como lugar-purgatório, como espaço privilegiado do páthos e do sofrimento, da contaminação e da iminência da morte, traduzia a leitura de um Jó com AIDS proposto pela encenação. Ele materializava, também, o desejo de configurar uma "poética da dor". Além disso, ao colocar o público ali dentro, exposto à concretude arquitetônica e dos objetos, e à memória e ao imaginário hospitalar, a encenação pretendia intensificar o fator-experiência. Ao invés da observação passiva, segura e distanciada, os espectadores deveriam se confrontar com eles mesmos enquanto possíveis "Jós'', e correr o risco de se contaminarem eles também.

Buscávamos a realização de uma cena imersiva, caracterizada pela impregnação e convocação dos sentidos, e baseada na participação mais do que na observação, na atuação mais do que na representação. Havia o desejo de produzir uma experiência integral para cada um dos espectadores ali presentes, reunindo e ativando elementos físicos, sensoriais, emocionais e racionais.

No caso específico do Hospital Umberto Primo, desativado em 1.993, o espetáculo se constituía, também, como uma denúncia in loco do caos do sistema governamental de saúde. Fechado há quase um ano por falta de recursos e equipamentos, o grande complexo hospitalar abandonado espelhava, nitidamente, a ineficiência na gestão da saúde e o descaso com o bem público. Era frequente nos jornais daquela época, a veiculação de imagens de alas hospitalares apinhadas de doentes ou de cirurgias de emergência realizadas em corredores. Consequentemente, tal contexto amplificava a sensação de desconforto e revolta na plateia, quando a mesma caminhava por três andares de um enorme hospital, repleto de quartos, enfermarias e instrumental médico, inteiramente deixado ao abandono.

O grupo, inclusive, estabeleceu acordo com a associação dos funcionários do Umberto Primo - os quais se encontravam há meses sem receber salário - de repassar uma porcentagem da bilheteria (20%) para o fundo de caixa da entidade.

Outra modificação importante levada a cabo em O Livro de Jó foi o tempo destinado à exploração do espaço. Na igreja tivemos pouco mais de quinze dias para realizar toda a adaptação da peça no local, duração esta insuficiente e prejudicial ao espetáculo. Houve um aprendizado, pelo erro, de que um lugar não-convencional - também denominado site specific - demanda um período maior de apropriação. Além disso, pela primeira vez, foi estruturado um caminho metodológico de abordagem e de investigação do espaço.

Entre outros procedimentos, a direção idealizou formas de se aproximar do lugar, de "entrar" em seus interiores, de perceber a sua "respiração", a fim de descobrir o teatral dentro do arquitetônico, de trabalhar a sua atmosfera e memória como recursos para a interpretação dos atores, e ainda, de experimentar diferentes trajetórias espaciais para o espetáculo que dialogassem com a estrutura da dramaturgia. Para tanto, o grupo destinou dois meses de ensaio, antes da estreia, apenas ao processo de ocupação e apropriação cênica do hospital.

 

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