Apocalipse Atrás das Grades (Macksen Luiz)

Apocalipse Atrás das Grades

Macksen Luiz

 

Depois de três semanas de ensaios abertos, estreou sexta-feira no desativado presídio do Hipódromo, no bairro Bresser, em São Paulo, a versão do Teatro da Vertigem de Apocalipse 1, 11. O prédio, que hoje abriga os serviços administrativos de saúde do sistema penitenciário paulistano, parece bastante anticonvencional para uma apresentação teatral, mas a dramaturgia cênica que o grupo desenvolve desde o Paraíso Perdido, em que transferiu para uma igreja a interpretação contemporânea do "Gênesis", e especialmente em O Livro de Já, em que um hospital servia de cenário aos tormentos de um homem submetido a uma praga de sofrimentos, que o diretor Antônio Araújo não mais surpreende na escolha de uma construção dentro da qual ele edifica a cena. Para as revelações contidas no "Apocalipse", comunicadas a um João que pouco tem a ver com o evangelista bíblico, as paredes escuras e carregadas de memórias de violência, dor e desespero de um presídio são mais do que uma cenografia que procura tirar efeitos provocadores de lembranças, mas uma ambientação que aprisiona o espectador numa representação apocalíptica.

O que se passa nesse teatro de horrores, no fim de um milênio de um Brasil de convulsões sociais cada vez menos silenciosas, é uma celebração teatral cheia de indignação que transporta as revelações divinas ao profeta para a perplexidade de um João solto numa grande cidade e que diante da devassidão e da violência deseja alcançar a Nova Jerusalém, o espaço da consciência e da superação de um certo tipo de mundo. João é um retirante que, confinado a um hotel barato, com sua mala ordinária, recebe a visita de um anjo que concede a ele a graça de ver e testemunhar. Inicia-se, assim, a peregrinação de um homem contemporâneo pelos porões de uma sociedade perversa, doente, miserável. A partir de então, João se transforma numa figura muda, sempre presente em cena e que, aparentemente, apenas vê. E ao seu lado estão os 60 espectadores que percorrem na companhia desse peregrino as vilanias, crimes e punições aos miseráveis, presos na sua própria condição de sobreviventes de seu tempo. O público é levado para o interior do presídio por esse João que fecha, ruidosamente, atrás de nós a primeira das muitas portas e grades de ferro que nos confinarão por duas horas tensas e surpreendentes numa experiência teatral vertiginosa.

O texto de Apocalipse 1,11, de Fernando Bonassi, se inspira tanto nas referências bíblicas que retira não exclusivamente do último livro do "Novo Testamento", mas também de outros, quanto nas vulgaríssimas palavras da prostituta Babilônia, a mulher de todas as abominações, ou do travesti Besta e seu discurso de abjeções. A cena em que esses personagens surgem se passa numa boate em que o show/culto religioso/programa de televisão reúne algumas imagens da cultura descartável, da pregação das igrejas eletrônicas, do pansexualismo e da presença da droga, num espetáculo grosseiro na forma e macabro na essência.

O autor, que praticamente escreveu a peça ao lado do encenador e, portanto, é quase indissociável na autoria desse projeto de dramaturgia cênica, acentua a violência ao transferi-lo para a prisão, onde todos são violados na sua dignidade humana. No julgamento que se segue, ninguém escapa da punição, e a morte é a única perspectiva que se oferece àqueles que são submetidos à lei do olho por olho, dente por dente. Ao final, João se reencontra com Jesus, com quem tinha rompido, para uma reconciliação, sentados num meio-fio de rua, fumando um cigarro, e assim atingir a sua humanidade ao constatar que, depois de assistir a tantas abominações, perdeu o medo que trazia em si. A Nova Jerusalém está dentro dele, para além de todas as desgraças à sua volta.

O otimismo desse final contrasta com a revolta que o texto espalha pelas diversas cenas, até mesmo na bucólica presença de uma menina que placidamente rega um vaso de flores, para logo em seguida atear fogo nas plantas, dando o tom do espetáculo logo no princípio. Nem sempre Fernando Bonassi e Antônio Araújo conseguem desviar-se de um planfletarismo que percorre a cena, ameaçando a densidade dramática que traz no bojo virulência teatral indiscutível. Esses desvios ocorrem quando se pretende sublinhar uma ação de protesto, transformar aquilo que se evidencia por si mesmo em um ato de exposição acusatória.

Nesse sentido, Apocalipse tem laivos de um CPC (Centro Popular de Cultura), em tempos neoliberais. Mas são apenas algumas poucas farpas no texto, que se recompõem na crueza da montagem e na consciência final do personagem, que é conduzido ao longo da encenação como uma figura-espelho da plateia. Num painel tão poderosamente atraente pelos estímulos que provoca, a participação dos atores, por vezes, pode parecer mais um elemento desse afresco, mas, na verdade, o elenco demonstra vigor e coragem, física e emocional, para desafiar o peso da montagem.

Antônio Araújo amplia o caráter processional de suas montagens anteriores, ao confinar o público a uma área de supressão como um presídio. O espectador não apenas caminha por uma arquitetura degradada pelo uso e o abandono, como se submete à experiência dramática de percorrer corredores escuros, celas que parecem gavetas mortuárias, e sentir o cheio de mofo e umidade, criando uma relação física imperativa. A sensação física, no entanto, não se esgota na impressão de histórias vividas nesse cenário, mas é um apoio decisivo para que as impressionantes cenas construam a memória de um apocalipse que estamos vivendo. Assistir a uma cena de sexo explícito, realizada por um casal que vive profissionalmente dessa atividade, ou participar de corredor polonês na representação de um massacre, e ainda se confrontar com a ameaça de tortura com um rato, ou ficar frente a frente com um homem degradando uma mulher ao urinar em seu corpo, adquire um sentido agressivo, mas em nenhum momento gratuito ou banalizador da violência.

A ação cênica está organicamente vinculada a uma dramática que reflete o real para erigir a metáfora, que tem na origem a narrativa bíblica e na expressão o apocalipse nacional. Apocalipse 1, 11 é um espetáculo nervoso, que deixa o público em suspensão permanentemente. O que virá a seguir é sempre mais penoso e amargo do aquilo com o que já nos confrontamos antes. Nesse jogo furioso de degradações, o espectador vivencia um apocalipse, é preso numa área de dor, é alertado para onde está, e escapa no final pelas mãos de João, que abre todos os portões e grades, devolvendo-o à rua. Apocalipse 1, 11 tem um forte efeito de sensibilização e, até na maneira que conduz a provocação, revela carga poética avassaladora; e talvez esteja na forma poética desse teatro, que pretende fazer a representação de um tempo, a chave para mergulhar com lucidez e emoção no espetáculo. Uma experiência definitiva, que precisa ser apresentada no Rio.

(Jornal do Brasil - RJ, 17/01/2000 )