Apocalipse Segundo a Criação (Kil de Abreu)

Apocalipse Segundo a Criação

Kil de Abreu

 

Do miradouro mais alto do presídio do Hipódromo-uma penitenciária desativada em 1995, depois de duas rebeliões, é possível ver a tarde cair sobre a paisagem rude do bairro da Mooca, zona leste de São Paulo. O vozerio se perde ao longe, vindo dos apartamentos e repartições vizinhas. Um mundo alheio à construção de um outro universo, que está sendo gestado dentro das celas e corredores da prisão: Apocalipse 1,11, o novo espetáculo do Teatro da Vertigem, uma das companhias mais polêmicas (e premiadas) da década.

No pátio central da cadeia, a prostituta Babilônia desce as escadas de ferro para a cena do Juízo Final. Da sua boca saem as maiores barbaridades. Ela blasfema contra o juiz e acusa a todos para, por fim, ser colocada violentamente em uma camisa -de- força.

O diretor Antônio Araújo interrompe a cena. Pede que o texto do Anjo Poderoso, personagem de Joelson Medeiros, seja dito durante a ação e não depois. Ainda atada à camisa, a atriz Mariana Lima tenta descobrir a melhor maneira de cair no chão. Tudo recomeça. A sequência é repassada várias vezes-para que o diretor corrija detalhes aparentemente sem importância, mas que com o avanço do trabalho vão revelando de fato novas qualidades na cena.

Pelo ensaio é fácil concluir que o espetáculo não está interessado em fazer uma leitura fiel do texto bíblico. Parece mais apontar para o submundo urbano que a paisagem de São Paulo esconde, do lado de fora das grades.

A penitenciária agora é morada de personagens ambíguos, que lembram a mitologia bíblia ao mesmo tempo que parecem com gente que se pode encontrar na esquina. João (Vanderlei Bernardino) pode ser um migrante em busca da terra prometida; policiais lembram religiosos fundamentalistas ou chefões do tráfico de drogas; uma noiva (Miriam Rinaldi) busca o homem que vai semear seu ventre; uma prostituta participa de um show de horrores não muito diferente do que se pode ver na televisão; um travesti decadente (Roberto Audio) personifica a Besta. São essas algumas das "aparições" reveladas em cena. A danação é realidade assustadoramente próxima e comum a qualquer brasileiro.

Antônio Araújo conta que a certa altura dos ensaios brincava-se que o espetáculo poderia se chamar "O Apocalipse da São João", referência à rua de São Paulo que virou ícone da cultura "boca-do-lixo". Para investigar essa realidade e trazê-la à cena, foi preciso inventar o que todos no grupo chamam de processo colaborativo, pensado já no início do projeto, quando Antônio convidou o escritor Fernando Bonassi para a dramaturgia do espetáculo e propôs que todos os atores estivessem empenhados não somente como intérpretes, mas também como co-autores da cena. "É uma autoria compartilhada", diz Bonassi. "Eu não me adiantei ao trabalho dos atores. Há cenas inteiras criadas por eles. Estive a serviço de um processo de criação que me inclui”.

Essa maneira de criação necessitou da presença de um dramaturgista, com a função de, entre outras coisas, fazer a ponte entre o material bruto colhido nas improvisações e o texto do dramaturgo. "Nós fomos inventando um modo de fazer esse caminho da cena ao texto ou do texto à cena, até gerar as estruturas dramatúrgicas do espetáculo", diz Lucienne Guedes, responsável pela tarefa.

Mas eis que chega a hora de fazer os últimos cortes no material gerado durante mais de um ano de trabalho, e que incluiu workshops criados pelos atores e baseados na observação em delegacias, boates, penitenciárias, zonas de prostituição e templos evangélicos. "Já tivemos seis horas de cena, o que daria pra montar três espetáculos!", brinca a atriz Miriam Rinaldi. Agora a peça está próxima das duas horas. ''Ainda está longo", diz Lucienne, com ar de cansaço. "Há muitas coisas boas que provavelmente serão limadas, mas é preciso que a gente se desapegue delas pra que o todo seja maior do que as partes”.

Durante uma pausa no ensaio, depois de uma reunião entre diretor e atores, nota-se pelos comentários que a maior parte concorda que os cortes são inevitáveis, mas parece que não há consenso sobre onde cortar.

"No fundo, a gente sabe o que pode ser cortado. É como fazer mala. Tem um monte de coisas boas, mas você sabe que vai pesar", diz, conformado, o ator Vanderlei Bernardino. O João que ele interpreta atravessa a história como testemunha dos acontecimentos. Vanderlei fala com carinho sobre o personagem: "É como se eu fosse buscar no coletivo algo que no fundo sou eu mesmo. O João é um brasileiro em geral, mas é um depoimento meu, em particular".

Esse entendimento nem sempre é pacífico. Mariana Lima diz, com certa melancolia, que o difícil é compreender a moral e a hierarquia de pessoas que vivem e morrem à margem. "É como se fosse um outro Brasil, ainda mais chocante do que este que a gente conhece. Quando você vai no Carandiru, na Cracolândia, nos prostíbulos, nas boates de sexo explícito, nas delegacias, você não pode mais entender o personagem sem tentar entender a lógica da vida dessas pessoas que nascem e morrem na periferia do país", constata. Mariana acha que a postura do diretor foi vital para o processo de criação dos personagens: "O Tó foi muito generoso em estimular que a gente pudesse trabalhar o excesso como princípio de criação, porque no fundo fica sempre esse desespero diante de uma realidade tão diversa e difícil de classificar", diz.

Para dar forma a essa "mitologia da destruição", foi necessário erguer um rigoroso projeto de criação artística, que reafirma o caminho de "estranhamento" procurado pelo grupo e alcançado, por exemplo, na preocupação com o espaço da representação. Em O Paraíso Perdido, a igreja abrigava a discussão sobre o sagrado; em O Livro de Jó, o hospital remetia à dor, ao sofrimento. Em Apocalipse, o presídio justifica-se como o lugar da punição, de expiação da culpa. Interessa ao diretor o sentido que o espaço estabelece ao dialogar com a cena: "O registro de interpretação dos atores e a leitura do espectador são afetados por essa memória do lugar, que gera uma carga simbólica muito forte", diz ele. De fato, ao acompanhar o andamento do espetáculo pelo labirinto de ferro da prisão, o espectador fica suspenso e uma zona intermediária entre o ficcional e o real. Cria-se uma tensão permanente diante do enfrentamento contínuo com um espaço-tabu. Poderia ser menos que incômodo, para um homem livre, passar algum tempo dentro de celas e ver as marcas deixadas por pessoas que sofreram ou até morreram ali?

Às vésperas das comemorações dos 500 anos, Apocalipse 1, 11 certamente se alinha ao coro dos que dizem que não há muito o que comemorar. Mas Antônio Araújo não quer que o trabalho seja confundido com o chamado "teatro de efeméride", tampouco identificado como um espetáculo engajado. "É um trabalho que fala sobre as nossas angústias diante desta situação insana em que o país se encontra e sobre a degradação da vida em uma cidade como São Paulo. Só isso. Não temos compromisso com cartilha ideológica nenhuma”.

 

(Palavra, 9/1211999)