O Livro de Jó Provoca Impacto (Sábato Magaldi)

O Livro de Jó Provoca Impacto

Sábato Magaldi

 

Quem viu O Paraíso Perdido, na igreja Santa Ifigênia, e agora O Livro de Jó, no Hospital Humberto Primo, sabe que não se encontra diante de um grupo rotineiro de teatro, por mais que esse grupo tenha uma visão artística séria. Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, responsável pelas duas produções, imprime a sua personalidade inquieta à experimentação a que vem procedendo, a qual está impregnada de um sentimento profundamente religioso, perplexo com os fenômenos inesperados que se sucedem.

Temperamento requintado, do ponto de vista estético, não é por ele que se define a preocupação dominante de Antônio Araújo. Ao assistir aos seus espetáculos num templo religioso e em dependências hospitalares, o observador seria tentado a concluir que ele se empenha em evitar os espaços convencionais, como se tornou frequente na procura moderna. O próprio encenador esclarece: "Talvez pudéssemos dizer que a opção por um espaço não-convencional está essencialmente centrada numa interferência na percepção do espectador, e não numa pesquisa arquitetônica ou numa 'estética do espaço'. E essa interferência acaba também se dando numa esfera maior que a da simples experiência artística vivenciada pelos espectadores, configurando uma interferência que é social, uma interferência nas instituições (talvez exista aí um certo desejo utópico de o teatro se presentificar com uma força de ação, de transformação)", Por certo, ninguém fica indiferente ao impacto provocado por O Livro de Jó.

Outro aspecto a considerar é o notório progresso interpretativo da montagem anterior para a atual. Na igreja, desculpava-se a menor nitidez da dicção pelos problemas de acústica. A força do coro suplantava a caracterização precisa de cada desempenho. Um esclarecimento do programa de O Livro de Jó altera o raciocínio, ao afirmar que, nele, o elenco se colocou "frente a uma dramaturgia mais formalizada, trazendo para o grupo o universo da palavra. Se anteriormente a linguagem gestual era a principal expressão das reflexões e vivências destes artistas, agora a voz começa a entrar no campo das preocupações; a exploração do movimento coral abre espaço para a construção de personagens; as experimentações corporais sobre as leis da física buscam transformar-se em treinamentos dos estados internos do ator". Retrospectivamente, seria justo reivindicar que O Paraíso Perdido deveria julgar-se também teatro da palavra. O que não impede reconhecer que O Livro de [á depurou extraordinariamente a voz e, com ela, ganharam todos os desempenhos. O Teatro da Vertigem conta hoje os nomes de valor de Matheus Nachtergaele, Mariana Lima, Miriam Rinaldi, Sergio Siviero, Siomara Schrõder, Vanderlei Bernardino e Lismara Oliveira.

O espaço do hospital não é mero cenário passivo. Antônio Araújo explorou-o nos mais variados recantos. Desde as primeiras imagens, em que três grandes paredes de vidro, muito bem iluminadas por Guilherme Bonfanti, abrem a visão do interior, até a utilização do instrumental próprio - macas, mesa cirúrgica, recipientes de soro etc.-, tudo é apropriado para que o sofrimento de Jó funcione também como clara metáfora da grande moléstia contemporânea, e um discreto avental do Emílio Ribas não permite equívoco. O movimento desse "teatro do percurso" tem, simbolicamente, uma direção ascensional, do térreo para o segundo andar, quando elenco e público se reúnem na sala cirúrgica.

Ainda que o espetáculo seja "realizado a partir da adaptação de Luís Alberto de Abreu do texto bíblico homônimo do 'Antigo Testamento"', ela é fundamental para a teatralidade alcançada. O adaptador conseguiu marcar as "vozes" dos interlocutores de [ó e sobretudo a da mulher dele, que existe como sua oponente dramática, trazendo o texto para o domínio do teatro. As simplificações da montagem atendem ao desenho interno da criação de Antônio Araújo, sem desrespeitar o propósito do dramaturgo de, ao lado do auto de fé, reivindicar a legitimidade do auto profano. Tantos valores situam O Livro de Jó entre as encenações felizes do nosso teatro.

 
(O Estado de S. Paulo, 24/8/1996)