INVESTIGAÇÃO E APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO - Antônio Araújo

5.21 INVESTIGAÇÃO E APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO

 

O processo colaborativo pode gerar espetáculos destinados a qualquer tipo de espaço cênico, seja ele italiano, arena, semi-arena ou "não-convencional". Como essa reflexão sobre procedimentos toma como base a experiência do Teatro da Vertigem, falaremos sob o ponto de vista da ocupação de espaços públicos e urbanos, não-institucionalmente destinados ao teatro, numa categoria denominada site specific. Não trataremos, porém, da luta política, burocrática, administrativa e de produção para a liberação dos locais de apresentação - que ocorre paralelamente ao processo de criação do texto e da montagem. Partiremos do momento em que o espaço encontra-se disponível para a realização dos ensaios.

A encenação, apesar de experimentar registros e formalizações concomitantemente à escritura do texto, só vai' se consolidar enquanto visão e linguagem após a entrada no lugar. Isso, é claro, por se tratar de um trabalho de natureza site spedfic. O espaço, nesse caso, é um divisor de águas na criação do encenador, além de configurar-se corno um elemento autônomo no espetáculo. Por outro lado, - é importante ressaltar -, a função criadora do encenador encontra-se presente ao longo de todo o processo, não se restringindo apenas a essa fase.

O local da apresentação, evidentemente, afetará também a dramaturgia - que deverá ser reelaborada à luz desse novo elemento - e o trabalho dos atores, o qual sofrerá um redimensionamento radical em razão desta ocupação. Ou seja, o processo de descoberta, exploração e diálogo com o espaço será compartilhado por todos.

Entre algumas das atividades que congregam todo o grupo, poderíamos citar os exercícios de percepção espacial ou de sensibilização arquitetônica, os workshops realizados a partir de algum nicho específico ou, ainda, as improvisações de implantação das cenas para aquele novo local. O espaço, nesse momento, passa a ser o motor e o objetivo da colaboração.

O mesmo vigor e ebulição investigativa que a companhia sentiu durante a confecção do canovaccio e do roteiro são, de certa forma, revividos aqui. Testa-se com grande liberdade a conformação do espetáculo àquela nova lógica arquitetônica. Por exemplo, a mesma cena é experimentada em nichos distintos e o percurso do espetáculo é improvisado em diferentes trajetórias espaciais.

Assim que o trajeto é definido, inicia-se a exploração de possibilidades cênicas em cada trecho. Novas improvisações são solicitadas aos atores e o dramaturgo começa a adequar a sua escritura àquelas condições arquitetônicas. O próprio deslocamento de um nicho a outro, ou de urna cena à seguinte, pede acréscimos ou exclusões de texto que não estavam previstas.

Acrescente-se a isso o impacto que o local exerce na sensibilidade dos intérpretes, afetando tanto a qualidade de presença quanto a construção das personagens ou figuras. Os elementos de perigo e de risco, inerentes a esses lugares, fazem com que os atores saiam de suas zonas de segurança e atuem num estado quase sempre limite.

Dentro da prática do Teatro da Vertigem, desenvolvemos a seguinte sequência de procedimentos em relação ao reconhecimento e à apropriação espacial:

 

·           Livre-exploração do local: primeiro contato com o ambiente, realizado por meio de uma "caminhada", "dança" ou de alguma vivência sensorial, sem nenhuma preocupação ou vinculação com a peça ou as personagens. A ideia é se deixar levar pela atmosfera ou pela própria curiosidade;

·          Jogos: abordagem lúdica e descompromissada de lidar com o lugar por meio de jogos infantis clássicos ou adaptados (esconde-esconde, cabra-cega, caça ao tesouro, etc.). Tal dinâmica ajuda a "quebrar o gelo" com o local, atenuando os constrangimentos, a timidez e os eventuais medos;

·         Viewpoints de espaço: técnica adaptada para o teatro pela diretora americana Anne Bogart, que trabalha com improvisações de movimento a partir de aspectos ligados à arquitetura e à topografia (dimensões do ambiente, texturas, luminosidade, etc.);

·         Encontrando ou construindo a "casa" da personagem: primeira dinâmica de aproximação ao universo da peça. Também com caráter lúdico, ela consiste em propor aos atores que busquem - ou construam - um nicho dentro do espaço, que servirá como "morada" de suas personagens;

·         Jogos e improvisações situacionais: buscam, por meio de impressões subjetivas ou de "tentativa-e-erro", um diálogo do espaço com situações ou circunstâncias concretas da peça. Nesse momento, inicia-se, de fato, a complexa "transposição" e reconfiguração daquilo que foi construído em sala de ensaio para uma nova conformação arquitetônica;

·         Experimentações da trajetória do espetáculo e do percurso do público dentro do espaço: através de vários "corridos" da peça inteira, vão sendo testadas diferentes possibilidades de ocupação, estruturação e deslocamentos. Trata-se do momento de espacialização da sequência integral das cenas, procurando identificar relações plásticas, simbólicas e metafóricas com o lugar. É a primeira vez, também, que se experimenta a materialidade do texto em diálogo com a concretude do local. Em suma, esta etapa instaura o processo de ressignificação do espaço;

·         Ensaios de marcação: definida a trajetória espacial da peça, inicia-se o trabalho de investigação das possibilidades de cada cena dentro do nicho escolhido;

·         Ensaios de aprofundamento da interpretação: além da apropriação espacial e do domínio técnico na relação com o lugar e seus objetos - fundamental para evitar acidentes -, estes ensaios exploram outras camadas de diálogo do ator com a arquitetura. Ao invés de "brigar" com o espaço e as suas dificuldades, buscam-se maneiras de utilizar os elementos arquitetônicos, atmosféricos, acústicos, "energéticos" ou ligados à história ou memória do lugar, a favor do trabalho interpretativo. A ideia é potencializar o estado de presença do ator ou os aspectos simbólicos das personagens por meio da relação concreta com a materialidade e a significação dos objetos e do local;

·         Corridos e ensaios gerais: fundamentais para o domínio da "logística de deslocamentos" de uma zona a outra, de um nicho a outro. Eles marcam também a etapa final do processo de apropriação do lugar;

·         Ensaios abertos: importantes na definição da quantidade real de espectadores por sessão, na compreensão do deslocamento do público pelo espaço, na correção de problemas de visibilidade e na identificação de elementos de risco para a plateia, que não foram ainda percebidos.

 

Pelo esquema acima proposto, pode-se perceber um percurso no processo de ocupação espacial, que parte do ator para a personagem, e daí para o espetáculo como um todo. Conquistado isso, volta-se novamente para uma instância menor, primeiramente relativa à cena, e depois, ao trabalho individualizado de cada ator. Somente, então, considera-se o espetáculo levantado. Poderíamos, portanto, resumir assim este percurso:

 

O ATOR NO ESPAÇO -> A PERSONAGEM NO ESPAÇO -> A TRAJETÓRIA DO ESPETÁCULO NO ESPAÇO -> A ESPACIALIZAÇÃO DE CADA CENA EM SEUS RESPECTIVOS NICHOS -> A INDIVIDUALIZAÇÃO DO TRABALHO DO ATOR NO DIÁLOGO COM O ESPAÇO -> ENSAIOS CORRIDOS

 

 

ARAÚJO, Antonio. A Encenação no Coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo. 2008. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, USP, Brasil. (p.174-7)