Organon para o Teatro (Brecht)

BRECHT - PEQUENO ORGANON PARA O TEATRO

PRÓLOGO
Vamos examinar, a seguir, qual será o teor de uma estética que se baseia em determinada forma de representar, a que, já de algumas décadas para cá, se tem dado realização prática. Nas ocasionais observações e conclusões teóricas e nas indicações técnicas, publicadas sob forma de comentários às peças do autor, o problema estético apenas foi aflorado de um modo acidental e relativamente desinteressado. Nelas, vemos uma determinada espécie de teatro alargar e restringir sua função social, completar ou selecionar seus meios artísticos, e estabelecer-se ou afirmar-se no campo da estética, quando isso vinha a propósito, menosprezando as prescrições então vigentes - quer elas fossem de natureza moral, quer dissessem respeito ao gosto artístico -, ou invocando-as em seu benefício, conforme a sua posição de combate. Era com discrição que defendia, por exemplo, o seu pendor social - apontando tendências sociais em obras geralmente consagradas e utilizando apenas o argumento de serem estas as tendências então aceitas. Caracterizava a eliminação de todos os valores culturais, na produção contemporânea, como um indício de decadência; acusava os recintos de diversão noturna de se terem degradado e passado a ser mais um ramo do comércio burguês de estupefacientes. As falsas reproduções da vida real que eram efetuadas nos palcos, incluindo as do chamado naturalismo, levaram-no a solicitar reproduções cientificamente exatas, e o insípido espírito de "iguaria", de deleite sensaborão através dos olhos e da alma, fê-lo exigir a excelente lógica da tabuada. Este teatro rejeitou, com desdém, o culto do belo, culto então alimentado ao lado de uma aversão ao saber e de um desprezo pelo útil; e o que induziu a essa renúncia foi, sobretudo, a circunstância de não estar produzindo nada de belo naquela época. Aspirava-se a um teatro próprio de uma época científica e, como era muito difícil para os planejadores desse teatro requisitar ou furtar do arsenal dos conceitos estéticos vigentes sequer apenas o bastante para manter os estetas da Imprensa à distância, preferiram simplesmente ameaçar afirmando o seguinte propósito: "extrair do instrumento de prazer um objeto didático e reformar determinadas instituições transformando-as de locais de diversão em órgãos de divulgação" (Notas sobre a Ópera), ou seja, emigrar do reino do aprazível. A estética, legado de uma classe depravada que se tornara parasitária, encontrava-se num estado tão deplorável que um teatro que preferisse apodar-se de thaëter logo adquiria, por si, tanto prestígio como liberdade de ação. No entanto, o que então se praticava como teatro de uma época científica não era ciência, mas, sim, teatro, e toda essa porção de inovações, surgidas num período em que não havia possibilidade de demonstração prática (no período nazi e durante a guerra) faz que se torne premente analisar qual a posição deste gênero de teatro dentro da estética, ou, então, determinar os traços de uma estética adequada a esta espécie de teatro. Seria demasiado difícil, por exemplo, apresentar a teoria do distanciamento fora de uma perspectiva estética. Poder-se-ia mesmo escrever, hoje em dia, uma estética das ciências exatas. Galileu já falava da elegância de certas fórmulas e do humor das experiências; Einstein atribuiu ao sentido da beleza uma função de descoberta e o físico atômico R. Oppenheimer enaltece a atitude científica afirmando que ela "tem uma beleza própria e se revela perfeitamente adequada à posição do homem na Terra". Chegou a altura de rebatermos, por muito que pese ao comum das pessoas, o nosso propósito de emigrar do reino do aprazível e de manifestarmos, por muito que pese ainda a maior número de pessoas, o nosso propósito de nos estabelecermos, daqui para frente, neste reino. Tratemos o teatro como um recinto de diversão, único tratamento possível desde que o enquadremos numa estética, e analisemos, pois, qual a forma de diversão que mais nos agrada.


1 O teatro consiste na apresentação de imagens vivas e acontecimentos passados no mundo dos homens que são reproduzidos ou que foram, simplesmente, imaginados; o objetivo dessa apresentação é divertir. Será sempre com este sentido que empregaremos o termo, tanto ao falarmos do teatro antigo como do moderno.

2 Se quiséssemos ampliar o conteúdo da expressão, poderíamos incluir nela, também, os acontecimentos ocorridos entre homens e deuses, mas, como nos interessa apenas determinar seu sentido restrito, tal acréscimo pode, perfeitamente, ser abolido. E, mesmo que optássemos por um tal alargamento de sentido, teríamos de continuar a descrever a função mais geral desta instituição que se denomina teatro exatamente nos mesmos termos, isto é, teríamos de continuar a descrevê-la como uma função de diversão. É esta a função mais nobre que atribuímos ao teatro.

3 O teatro, tal como todas as outras artes, tem estado, sempre, empenhado em divertir. E é este empenho, precisamente, que lhe confere, e continua a conferir, uma dignidade especial. Como característica específica, basta-lhe o prazer, prazer que terá de ser, evidentemente, absoluto. Tornando-o um mercado abastecedor de moral, não o faremos ascender a um plano superior; muito pelo contrário, o teatro deve justamente se precaver nesse caso, para não degradar-se, o que certamente sucederá se não transformar o elemento moral em algo agradável, ou, melhor, susceptível de causar prazer aos sentidos. Tal transformação irá beneficiar, justamente, o aspecto moral. Nem sequer se deverá exigir ao teatro que ensine, ou que possua utilidade maior do que a de uma emoção de prazer, quer orgânica, quer psicológica. O teatro precisa poder continuar a ser algo absolutamente supérfluo, o que significa, evidentemente, que vivemos para o supérfluo. E a causa dos divertimentos é, dentre todas, a que menos necessita de ser advogada.

4 O objetivo que os Antigos, segundo Aristóteles, seguem em suas tragédias não pode classificar-se nem como superior nem como inferior ao simples objetivo de divertir. Dizer que o teatro surgiu das cerimonias do culto não é diferente do que dizer que o teatro surgiu precisamente por se ter desprendido destas; não adotou a missão dos mistérios, adotou, sim, o prazer do exercício do culto, pura e simplesmente. E a catarse aristotélica, a purificação pelo terror e pela piedade, ou a purificação do terror e da piedade, não é uma ablução realizada simplesmente de uma forma recreativa, é, sim, uma ablução que tem por objetivo o prazer. Quaisquer exigências ou concessões que façamos ao teatro para além disto significam apenas que estamos menosprezando seu objetivo específico.


5 E, ainda que distingamos uma forma superior e uma forma inferior de diversão, a arte não se compadece de tal distinção; o que ela ambiciona é poder expandir-se livremente, tanto numa esfera inferior como numa esfera superior, desde que divirta o público com isso.


6 Mas o teatro pode proporcionar-nos prazeres fracos (simples) e prazeres intensos (complexos). Os últimos surgem-nos nas grandes obras dramáticas e desenvolvem-se até alcançarem um apogeu, do mesmo modo que o ato sexual, por exemplo, alcança a sua plenitude no amor; são mais diversificados, mais ricos em poder de intervenção, mais contraditórios e de consequências mais decisivas.


7 E as diversões próprias das diferentes épocas têm sido, naturalmente, distintas umas das outras, variando de acordo com o tipo de convívio humano de cada época. O demos dos circos helênicos, sob o domínio da tirania, teve de ser recriado de uma forma diferente na corte feudal de Luís XIV. O teatro tem precisado proporcionar reproduções diversas do convívio humano, que não são apenas imagens de um convívio diferente, mas também imagens dadas de uma forma diferente.


8 Foi necessário dar às personagens proporções diversas, e também as situações tiveram de ser construídas segundo uma perspectiva diversa, conforme a natureza da diversão possível e necessária em cada forma de convívio humano. Deve-se narrar as histórias de uma forma muito distinta a fim de que possam divertir aos helenos, para quem não havia possível escapatória da lei divina, ainda que esta fosse desconhecida, ou aos franceses, com a sua graciosa auto-suficiência que o código de deveres palacianos exige dos grandes senhores do mundo, ou aos ingleses da era elisabetana, com o seu narcisismo de homens novos, totalmente libertos de inibições.


9 Não se deve também esquecer que o usufruto de reproduções de espécie tão diversa quase nunca dependeu do grau de semelhança entre a imagem e o seu objeto. A inexatidão, e mesmo uma forte falha de verossimilhança, pouco ou nada importavam, desde que a inexatidão apresentasse uma certa consistência e a inverossimilhança conservasse um certo grau de semelhança. Bastava a ilusão de que o decurso das histórias se desenrolava compulsivamente, ilusão criada por toda a espécie de recursos teatrais e poéticos. Também nós fechamos de bom grado os olhos a tais discrepâncias sempre que nos permitem extrair das abluções espirituais de Sófocles, dos holocaustos de Racine ou dos instintos sanguinários de Shakespeare um proveito parasitário, apoderando-nos dos belos ou grandes sentimentos dos protagonistas dessas histórias.


10 Das múltiplas espécies de reproduções de acontecimentos significativos ocorridos no mundo dos homens, que, desde os Antigos até hoje, têm sido apresentadas no teatro e que, apesar de sua inexatidão e sua ausência de verossimilhança, têm servido de diversão, há, ainda, hoje em dia, um número espantoso que também diverte a nós.

11 Ora, se constatamos a nossa capacidade de nos deleitarmos com reproduções provenientes de épocas tão diversas (o que teria sido quase impossível aos filhos dessas épocas grandiosas), não deveríamos, então, suspeitar que nos falta ainda descobrir o prazer específico, a diversão própria da nossa época?


12 A nossa capacidade de fruição do teatro deve ter-se atrofiado, em relação à dos Antigos, muito embora a nossa forma de convívio ainda se assemelhe bastante à sua para que, de maneira geral, essa fruição possa surgir da nossa arte. Apossamo-nos das obras antigas por intermédio de um processo relativamente novo, ou seja, por empatia, processo para o qual as referidas obras não dão, de si, grande contribuição. A nossa fruição é, desta forma, quase totalmente alimentada por fontes diversas das que tão possantemente se abriram para aqueles que viveram antes de nós. Arranjamos uma compensação na beleza da linguagem dessas obras, na elegância da sua fabulação, nas passagens cujo poder de sugestão nos permite criar uma representação mental desligada delas, em suma, nos ornamentos. Esses recursos poéticos e teatrais dissimulam, justamente, a sensação de desacerto que a história nos provoca. Os nossos teatros já não têm a capacidade ou o prazer de narrarem estas histórias, nem mesmo as do grande Shakespeare (que não são, assim, tão antigas), com exatidão, isto é, tornando verossímil a associação dos acontecimentos. E a fábula é, segundo Aristóteles - e nesse ponto pensamos identicamente -, a alma do drama! Cada vez mais nos molesta o primitivismo e o descuido que encontramos nas reproduções do convívio humano, não só nas obras antigas, mas também nas contemporâneas, quando estas são feitas pelas receitas antigas. O nosso modo de fruição começa a desatualizar-se

13 É a sensação de desacerto, que nos vem perante as reproduções dos acontecimentos, ocorridos no mundo dos homens, que reduz nosso prazer no teatro. A razão desse desacerto é o fato de a nossa posição em relação ao objeto reproduzido ser diversa daquela dos que nos antecederam.


14 Ao indagarmos que espécie de diversão (direta), que prazer amplo e constante o nosso teatro nos poderia proporcionar com suas reproduções do convívio humano, não podemos esquecer que somos filhos de uma era científica. O nosso convívio como homens - a nossa vida, quer dizer - está condicionado, pela ciência, dentro de dimensões completamente novas.


15 Há algumas centenas de anos, houve umas quantas pessoas que, embora em países diversos, realizaram experiências equivalentes no sentido de arrancarem à Natureza os seus segredos. Pertencendo à classe industrial de cidades já então poderosas, transmitiram suas invenções a terceiros, que as exploraram no domínio da prática, sem pedirem das novas ciências outra coisa senão lucro pessoal. Indústrias que, durante milhares de anos, se haviam mantido dentro de processos quase inalterados, desenvolveram-se, então, espantosamente, em várias localidades; estas localidades ligavam-se umas às outras pela concorrência e englobavam em si, por toda a parte, grandes massas humanas, que, estruturadas de uma forma nova, iniciaram uma produção gigantesca. Em breve, a humanidade pôde revelar forças de uma amplitude até então nunca sonhada.


16 Dir-se-ia que a humanidade só agora se dispunha, unitária e consciente, a tornar habitável o astro em que vivia. Vários elementos naturais, tais como o carvão, a água, o petróleo, tornaram-se verdadeiros tesouros. Incumbiu-se o vapor de água de mover veículos; umas quantas pequenas faíscas e a vibração das coxas da rã denunciaram uma força da Natureza, uma força que produzia luz e transportava o som por sobre os continentes, etc. Era com um olhar novo que o homem, por toda a parte, mirava ao redor de si e inquiria como lhe seria possível utilizar para seu bem-estar tudo o que já há muito conhecia de vista, mas nunca utilizara. O meio ambiente transformava-se cada vez mais, de decênio em decênio, depois de ano para ano, e, mais tarde, quase de dia para dia. Eu próprio estou neste momento escrevendo numa máquina que não era conhecida quando nasci. Desloco-me nos novos veículos a uma velocidade que o meu avô não poderia sequer imaginar; não havia nada nesse tempo que se movesse tão rapidamente. E, além disso, elevo-me no ar, coisa que era impossível a meu pai. Podia conversar com o meu pai de um continente para outro, mas foi só com o meu filho que vi as imagens animadas da explosão de Hiroxima.


17 Se bem que as novas ciências tenham proporcionado uma tão enorme modificação e, sobretudo, a possibilidade de modificação do nosso ambiente, não se pode, na verdade, afirmar que estejamos imbuídos do seu espírito, que ele condicione a todos. O motivo por que a nova forma de pensamento e de sensibilidade não se impôs ainda às massas está no fato de a classe que deve justamente às ciências a sua supremacia - a burguesia - impedir que as ciências, que foram tão proveitosas na exploração e sujeição da Natureza, se apoderem de outro domínio ainda virgem, o domínio das relações dos homens entre si e no ato de explorar ou subjugar a Natureza. Esta tarefa, da qual dependem todas as outras, foi efetuada sem que os novos métodos de pensamento que a possibilitaram viessem esclarecer a relação recíproca existente entre aqueles que a efetuaram. A nova visão da Natureza não incidiu também sobre a sociedade.

18 Com efeito, as atuais relações entre os homens tornaram-se mais impenetráveis do que outrora. O gigantesco empreendimento comum em que estão empenhados parece desvia-los cada vez mais e mais, o aumento de produção causa aumento de miséria e com a exploração da Natureza somente lucram uns poucos e, precisamente, por estarem explorando os homens. O que poderia ser o progresso de todos torna-se a vantagem de alguns apenas, e uma parte crescente da produção é votada à criação de meios destruidores destinados a guerras poderosas, a guerras em que as mães de todas as nações, com os filhos apertados contra si, esquadrinham estupefatas o céu, no rastro dos inventos mortíferos da ciência.


19 Os homens de hoje estão, perante as suas próprias realizações, exatamente como outrora, perante as imprevisíveis catástrofes da Natureza. A classe burguesa, que deve à ciência a sua prosperidade, prosperidade que transformou em domínio ao tornar-se sua beneficiária exclusiva, não ignora que, se a perspectiva científica incidir sobre suas realizações, isso representa o fim do seu domínio. A nova ciência, que se debruça sobre a natureza das diversas sociedades humanas e que foi fundada há cerca de cem anos, mergulha suas raízes na luta dos dominados contra os dominantes. Desde então, tem-se manifestado nos trabalhadores, para quem a grande produção é vital, algo que é, no fundo, como que um espírito científico; segundo esse espírito, as grandes catástrofes são consideradas como obra dos que dominam.


20 A ciência e a arte têm de comum o fato de ambas existirem para simplificar a vida do homem; a primeira, ocupada com a sua subsistência, a segunda, em proporcionar-lhe diversão. No futuro vindouro, a arte extrairá diversão da nova produtividade, produtividade esta que tanto pode melhorar a nossa existência e que, uma vez livre de obstáculos, pode vir a ser, em si própria, o maior de todos os prazeres.


21 Se quisermos, pois, entregar-nos à grande paixão de produzir, qual deverá ser o teor das nossas reproduções do convívio humano? Qual será a atitude produtiva, em relação à Natureza e à sociedade, que, no teatro, nos recreará, a nós, os filhos de uma época científica?


22 Essa atitude é de natureza crítica. Perante um rio, ela consiste em regularizar o seu curso; perante uma árvore frutífera, em enxertá-la; perante a locomoção, em construir veículos de terra e de ar; perante a sociedade, em fazer uma revolução. As nossas reproduções do convívio humano destinam-se aos técnicos fluviais, aos pomicultores, aos construtores de veículos e aos revolucionários, a quem convidamos a virem aos nossos teatros e a quem pedimos que não esqueçam, enquanto estiverem conosco, os seus respectivos interesses (que são uma fonte de alegria); poderemos, assim, entregar o mundo aos seus cérebros e aos seus corações, para que o modifiquem a seu critério.

23 Sem dúvida, só será possível ao teatro assumir uma posição independente, caso se entregue às correntes mais avassaladoras da sociedade e se associe a todos os que estão, necessariamente, mais impacientes por fazer grandes modificações nesse domínio. É, sobretudo, o desejo de desenvolver a nossa arte em diapasão com a época em que ela se insere que nos impele, desde já, a deslocar o nosso teatro, o teatro próprio de uma época científica, para os subúrbios das cidades; aí ficará, a bem dizer, inteiramente à disposição das vastas massas de todos os que produzem em larga escala e que vivem com dificuldades, para que nele possam divertir-se proveitosamente com a complexidade dos seus próprios problemas. É possível que achem difícil remunerar a nossa arte, é possível que não compreendam, logo à primeira vista, a nossa nova forma de diversão, e, em muitos aspectos, nós teremos de aprender a descobrir aquilo de que necessitam e de que modo o necessitam; mas podemos estar seguros do seu interesse. É que todos aqueles que parecem tão distantes da ciência o estão, com efeito, pela simples razão de serem mantidos a distância; para se apropriarem da ciência terão de desenvolver e pôr em prática, por si, desde já, uma nova ciência social. São estes os verdadeiros filhos de uma era científica como a nossa, cujo teatro não se poderá desenvolver se não forem eles a impulsioná-lo. Um teatro que torne a produtividade fonte principal de diversão deverá torná-la, também, seu tema; e é com um cuidado muito particular que deverá fazê-lo, hoje em dia, pois por toda a parte vemos o homem a impedir o homem de produzir a si próprio, isto é, de angariar o seu próprio sustento, de divertir-se e divertir. O teatro tem de se comprometer com a realidade, porque só assim será possível e será lícito produzir imagens eficazes da realidade.

24 Tudo isto vem facilitar ao teatro uma aproximação, tanto quanto possível estreita, com os estabelecimentos de ensino e de difusão. Pois, embora o teatro não deva ser importunado com toda a sorte de temas de ordem cultural que não lhe confiram um caráter recreativo, tem plena liberdade de se recrear com o ensino ou com a investigação. Faz com que as reproduções da sociedade sejam válidas e capazes de a influenciar, como autêntica diversão. Expõe aos construtores da sociedade as vivências dessa mesma sociedade, tanto passadas como atuais; mas fá-lo de forma que se possam tornar objetos de fruição os conhecimentos, os sentimentos e os impulsos que aqueles que dentre nós são os mais emotivos, os mais sábios e os mais ativos, extraem dos acontecimentos do dia-a-dia e do século. E nosso propósito recreá-los com a sabedoria que advém da solução dos problemas, com a ira em que se pode proveitosamente transformar a compaixão pelos oprimidos, com o respeito pelo amor de tudo o que é humano, ou seja, pelo filantrópico; em suma, com tudo aquilo que deleita o homem que produz.


25 O teatro pode, assim, levar seus espectadores a fruir a moral específica da sua época, a moral que emana da produtividade. Tornando a crítica, ou seja, o grande método da produtividade, um prazer, nenhum dever se deparará ao teatro no campo da moral; deparar-se-ão, sim, múltiplas possibilidades. A sociedade pode mesmo extrair prazer de tudo o que apresente um caráter associal, desde que o apresentem como algo vital e revestido de grandeza; assim se nos revelam, com frequência, forças intelectuais e inúmeras capacidades de especial valia, empregadas porém, evidentemente, com propósitos destruidores. Ora bem, a sociedade pode mesmo gozar livremente, em toda a sua magnificência, dessa torrente que irrompe catastroficamente, desde o momento que lhe seja possível dominá-la, passando nesse caso a corrente a ser sua.


26 Para levar a bom termo um empreendimento desta ordem seria impossível deixar o teatro ficar como está. Entremos numa das habituais salas de espetáculos e observemos o efeito que o teatro exerce sobre os espectadores. Olhando ao redor, vemos figuras inanimadas, que se encontram num estado singular: dão-nos a ideia de estarem retesando os músculos num esforço enorme, ou então de os terem relaxado por intenso esgotamento. Quase não convivem entre si; é como uma reunião em que todos dormissem profundamente e fossem, simultaneamente, vítimas de sonhos agitados, por estarem deitados de costas, como diz o povo a propósito dos pesadelos. Têm os olhos, evidentemente, abertos, mas não veem, não fitam e tampouco ouvem, escutam. Olham como que fascinados a cena, cuja forma de expressão embebe suas raízes na Idade Média, a época das feiticeiras e dos clérigos. Ver e ouvir são atos que causam, por vezes, prazer; essas pessoas, porém, parecem-nos bem longe de qualquer atividade, parecem-nos, antes, objetos passivos de um processo qualquer que se está desenrolando. O estado de enlevo em que se encontram e em que parecem entregues a sensações indefinidas, mas intensas, é tanto mais profundo quanto melhor trabalharem os atores; por isso desejaríamos, visto que tal estado de enlevo de forma nenhuma nos compraz, que os atores fossem antes tão maus quanto possível.


27 O mundo que é reproduzido e do qual são tirados excertos para a criação dos referidos estados de alma e emoções surge de coisas de tal maneira pobres e escassas - um tanto de caricatura, um quanto de mímica e uma certa porção de texto - que é impossível deixar de admirar a gente de teatro; admiramo-la por conseguir, com um decalque (tão pobre) do mundo, emocionar os espectadores muito mais intensamente do que o mundo propriamente dito.


28 E, no fundo, há que desculpar, em certa medida, os atores, porque a verdade é que, com reproduções mais exatas do mundo, não seria possível provocar os prazeres que lhes são comprados a troco de dinheiro e de celebridade; e seria, também, impossível fazer aceitar no mercado as suas reproduções inexatas se as apresentassem de uma forma menos mágica. A sua aptidão para retratar homens manifesta-se indiscriminadamente; são especialmente os patifes e as personagens menores que revelam traços da sua experiência e se diferenciam uns dos outros; as personagens principais, porém, devem conservar sempre um caráter geral, para que o espectador possa mais facilmente identificar-se com elas. E, além disso, os traços característicos devem sempre pertencer a um campo restrito, dentro do qual qualquer pessoa possa dizer imediatamente: "Ê isso mesmo"! O espectador deseja usufruir de sensações bem determinadas, tal como uma criança, por exemplo, quando monta num cavalo de madeira de um carrossel: a sensação de orgulho por saber andar a cavalo e por ter um cavalo, o prazer de se deixar levar e de passar junto de outras crianças, o sonho cheio da ventura de estar sendo seguida ou de estar ela própria a seguir outros, etc. A semelhança entre o veículo de madeira e um cavalo não contribui grandemente para que a criança experimente estas sensações; nem a aborrece, tampouco, o fato de a cavalgada se limitar a um pequeno círculo. Por sua vez, ao frequentador de teatro o que lhe interessa é poder substituir um mundo contraditório por um mundo harmonioso, um mundo que conhece mal por um mundo onírico.


29 Foi neste estado que encontramos o teatro, ao procurarmos realizar o nosso empreendimento. E a tal estado se devia que os nossos esperançosos amigos, a quem chamamos filhos do século científico, se encontrassem transformados numa intimidada massa crente, "fascinada".


30 Sem dúvida há cerca de meio século lhes tem sido dado ver reproduções algo mais fiéis do convívio entre os homens, e, também, personagens que se rebelam contra determinados males sociais ou até contra a estrutura global da sociedade. O seu interesse pelo teatro, foi, mesmo, suficientemente forte para que, de espontânea vontade, se sujeitassem temporariamente a uma extraordinária redução da linguagem, da fábula e do seu nível intelectual, pois a aragem do espírito científico que então soprava fazia que os habituais motivos de encanto se desvanecessem. Mas tais sacrifícios não valem muito a pena. O aperfeiçoamento das reproduções impedia um determinado tipo de prazer, sem que se oferecesse outro em troca. O campo das relações humanas tornou-se evidente, mas não "claro". As sensações provocadas pela forma antiga (mágica) continuaram a ser também da natureza das antigas.


31 Tal como anteriormente, os teatros eram os recintos de recreio de uma classe que mantinha o espírito dentífrico amarrado à Natureza, não ousando transferi-lo para as relações humanas. E à percentagem mínima do público que era proletária e a que se juntaram, apenas acessória e precariamente, alguns intelectuais apóstatas, era ainda, também, necessário o velho tipo de diversão, que constituía um alívio para o seu dia-a-dia sempre estipulado.


32 Todavia, prossigamos! Seja de que maneira for! Saímos a campo para uma luta, lutemos, então! Não vimos já como a crença removeu montanhas? Não basta então termos descoberto que alguma coisa está sendo ocultada? Essa cortina que nos oculta isto e aquilo, é preciso arrancá-la!


33 O teatro, tal como nos é dado ver atualmente, apresenta a estrutura da sociedade (reproduzida no palco) como algo que não pode ser modificado pela sociedade (na sala). Édipo, que pecou contra alguns dos princípios que sustém a sociedade de sua época, é executado, os deuses tomam a si esta tarefa, e eles não são criticáveis. As grandes personagens solitárias de Shakespeare, que trazem no peito a estrela do seu destino, arrojam-se em seus vãos e mortais frenesis suicidas, e liquidam-se a si próprias; é a vida, e não a morte, que se torna obscena, quando de suas derrocadas; a catástrofe não é susceptível de ser criticada. Sacrifícios humanos por toda a parte. Bárbaros divertimentos! Ora, se os bárbaros têm uma arte, façamos nós uma outra!


34 Por quanto tempo ainda os nossos espíritos, abrigados na escuridão os seus corpos "compactos", terão de penetrar em todas aquelas quimeras que pairam sobre o estrado, para participar de uma prosperidade, que, "de outro modo", nos é negada? Que espécie de libertação será esta, se no final de todas as peças - que apenas para o espírito da época é feliz (ajusta Providência, a disciplina) - vivemos a fantástica execução que pune a prosperidade por ser excesso! E de rastos que nos adentramos no Édipo - aí se deparam ainda e sempre os tabus: a ignorância não evita a punição; no Otelo, pois, o ciúme, ainda e sempre, nos move, e tudo depende da posse; no Wallenstein, também nós devemos ser livres e leais, para uma luta de concorrência, senão tal luta findará. Estes hábitos demoníacos são também fomentados em peças como Os Fantasmas e Os Tecelões; nelas, a sociedade como milieu surge, porém, envolta em maior problemática. É por coação que recebemos as sensações, as ideias e os impulsos das personagens principais, e da sociedade recebemos apenas o que nos é dado pelo milieu em que as personagens se movem.


35 Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as ideias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto.

36 Tal contexto tem de ser caracterizado na sua relatividade histórica. Ora, isto significa uma ruptura com o nosso hábito de despojar das suas diferenças as diversas estruturas sociais das épocas passadas, de maneira a fazê-las aproximarem-se mais ou menos da nossa, a qual, por sua vez, adquire, por meio desta operação, o caráter de algo sempre existente, portanto, eterno. Nós pretendemos, porém, deixar às diferentes épocas a sua diversidade e não esquecer jamais a sua efemeridade, de forma que a nossa época possa ser também considerada efêmera. (Para tal propósito, não podem, naturalmente, empregar o colorido ou o folclore, usados pelos nossos teatros para fazer sobressair, tanto mais acentuadamente quanto possível, a analogia das formas de ação dos homens das diferentes épocas. Indicaremos adiante quais os recursos teatrais a empregar.)


37 Se movimentarmos as personagens em cena por meio de forças motrizes de caráter social, que variem conforme a época, dificultaremos ao nosso espectador uma aclimatação emocional. Não poderá sentir, pura e simplesmente, que agiria tal e qual; dirá: "Também eu teria agido assim"; ou, quando muito: "Se eu tivesse vivido em tais circunstâncias..." E se representarmos as peças da nossa época tal como se fossem peças históricas, é possível que ao espectador pareçam, então, igualmente, singulares as circunstâncias em que ele próprio age; nasce nele, assim, uma atitude crítica.


38 As "condições históricas" não devem ser, evidentemente, consideradas, nem tampouco serão estruturadas, como poderes obscuros (segundos planos); são, sim, criadas e mantidas pelo homem (e por ele modificadas). Aquilo que a ação nos mostra é que constitui, justamente, essas condições.


39 Se uma pessoa se exprime numa perspectiva histórica, se reage de acordo com a sua época, e se, noutras épocas, reagiria diferentemente, não será, então, muito simplesmente, essa pessoa um protótipo de todas as outras? Cada pessoa reage, na realidade, de maneira diversa, conforme os tempos que correm e a classe a que pertence; quer tenha vivido noutra época, quer não tenha ainda vivido tanto tempo como outra, quer viva já no ocaso da vida, a reação é, sempre, infalivelmente, diversa, mas igualmente precisa e idêntica à de qualquer pessoa que se encontre na mesma situação e na mesma época; e será que tudo isto não nos leva a perguntar se não haverá, ainda, outras diferenças possíveis de reação? Onde encontrar o ser vivo, o próprio e inconfundível, aquele que não é absolutamente semelhante ao seu semelhante? É pela imagem que teremos de torná-lo patente a todos; e o processo para o conseguirmos será, precisamente, configurar na imagem a contradição. A imagem de perspectivação histórica será como que um esboço, pois em torno da figura em destaque indicará outros movimentos e outros traços. Ou, então, imaginemos um homem que está fazendo um discurso num vale e que, de vez em quando, muda de opinião, ou apenas diz frases que se contradizem, de maneira que o eco, acompanhando-o, põe as frases em confronto.


40 Tais imagens exigem, evidentemente, uma forma de representação que mantenha livre e móvel o espírito atento. Este tem de dispor da possibilidade de realizar montagens fictícias na nossa construção, "apartando as forças motrizes sociais ou substituindo-as por outras; através de tal processo, um comportamento adequado ao momento adquire o aspecto de algo "anormal" e as forças atuantes na circunstância perdem, por seu lado, a sua naturalidade e tornam-se susceptíveis de serem manipuladas.

41 Identicamente, o técnico de obras fluviais, vendo um rio, vê, ao mesmo tempo, seu leito primitivo e ainda vários outros leitos fictícios, possíveis se a inclinação do planalto ou o volume da água fossem outros. Enquanto ele vê em pensamento um outro rio, o socialista ouve, em pensamento, uma nova espécie de diálogo entre os trabalhadores rurais à beira do rio. Do mesmo modo, o nosso espectador devia encontrar no teatro esboços e ecos dos acontecimentos que se desenrolam entre os referidos trabalhadores rurais.


42 A forma de representação que foi experimentada no Teatro Schiffbauerdamm de Berlim, entre a primeira e a segunda guerra mundial, e cujo objetivo era apresentar imagens do tipo a que nos temos referido, baseia-se no efeito de distanciamento. Numa reprodução em que se manifeste o efeito de distanciamento, o objeto é susceptível de ser reconhecido, parecendo, simultaneamente, alheio. O teatro antigo e o teatro medieval distanciavam suas personagens por meio de máscaras representando homens e animais; o teatro asiático ainda hoje utiliza efeitos de distanciamento de natureza musical e pantomímica. Tais efeitos de distanciamento tornavam, sem dúvida, impossível a empatia e, no entanto, a técnica que os permitia apoiava-se, ainda mais fortemente do que a técnica que permite a empatia, em recursos sugestivos de natureza hipnótica. Os objetivos sociais destes antigos efeitos eram absolutamente diversos dos nossos.


43 Os antigos efeitos de distanciamento subtraem completamente o objeto reproduzido da intervenção do espectador, tornam-no inalterável. Quanto aos novos efeitos, estes nada mostram de bizarro - só uma visão que não seja científica classifica de bizarro o que é desconhecido. Os novos efeitos de distanciamento têm apenas como objetivo despojar os acontecimentos susceptíveis de serem influenciados socialmente no libelo de familiaridade que os resguarda, hoje em dia, de qualquer intervenção.


44 O que permanece inalterado há muito tempo, parece ser inalterável. Por toda a parte, as coisas que aparecem são de uma evidência já de si tão grande que não precisamos fazer esforço nenhum para sua compreensão. Os homens encaram tudo o que vive entre si como um dado humano preestabelecido. A criança que habita um mundo de senilidade fica conhecendo o que se passa nesse mundo; para ela, as coisas vão-se tornando correntes precisamente sob a forma por que ocorrem. E se houver alguém suficientemente ousado para desejar algo que esteja para além disso, vai querê-lo como simples exceção. Mesmo que reconheça que aquilo que a "Providência" lhe impõe é o que a sociedade providenciou, ainda a sociedade - esse poderoso conjunto de seres que lhe são similares - haverá de parecer-lhe um todo maior do que a soma das partes, um todo em absoluto não susceptível de ser modificado; desta forma, tudo o que não é susceptível de ser influenciado será familiar: e quem desconfia do que é familiar? Para que todos estes inúmeros dados pudessem parecer duvidosos, teria de ser capaz de produzir em si um olhar de estranheza idêntico àquele com que o grande Galileu contemplou o lustre que oscilava. As oscilações surpreenderam-no, como se jamais tivesse esperado que fossem dessa forma, como se não entendesse nada do que se estava passando; foi assim que descobriu a lei do pêndulo. O teatro, com as suas reproduções do convívio humano, tem de suscitar no público uma visão semelhante, visão que é tão difícil quanto fecunda. Tem de fazer que o público fique assombrado, o que conseguirá, se utilizar uma técnica que o distancie de tudo que é familiar.


45 Esta técnica permite ao teatro empregar, nas suas reproduções, o método da nova ciência social, a dialética materialista. Tal método, para conferir mobilidade ao domínio social, trata as condições sociais como acontecimentos em processo e acompanha-as nas suas contradições. Para a técnica em questão, as coisas só existem na medida em que se transformam, na medida, portanto, em que estão em disparidade consigo próprias. O mesmo sucede em relação aos sentimentos, opiniões e atitudes dos homens através dos quais se exprimem, respectivamente, as diversas espécies de convívio social.


46 Um dos prazeres específicos da nossa época, que tantas e tão variadas modificações efetuou no domínio da Natureza, consiste em compreender as coisas de modo que nelas possamos intervir. Há muito de aproveitável no homem, dizemos nós, poder-se-á fazer muito dele. No estado em que se encontra, é que não pode ficar; o homem tem de ser encarado não só como é, mas também como poderia ser. Não se deve partir dele mas, sim, tê-lo como objetivo. O que significa que não devo simplesmente ocupar o seu lugar, mas pôr-me perante ele, representando todos nós. É esse o motivo por que o teatro tem de distanciar tudo o que apresenta.


47 Para produzir o efeito de distanciamento, o ator teve de pôr de lado tudo o que havia aprendido antes para provocar no público um estado de empatia perante as suas configurações. Além de não tentar induzir o público a qualquer espécie de transe, o ator não deve também colocar-se em transe. Os seus músculos deverão permanecer relaxados. Um gesto de voltar a cabeça, por exemplo, com os músculos do pescoço contraídos, pode arrastar atrás de si, "magicamente", os olhares e, por vezes, até, as cabeças dos espectadores; mas toda e qualquer especulação ou emoção perante um gesto desta ordem apenas virá a ser debilitada pela magia que dele decorre. Que a dicção do ator não peque por um tom de ladainha de púlpito e por uma cadência que embale o espectador de modo a fazê-lo perder a noção do sentido. O ator, mesmo que esteja representando uma personagem possessa, não deve agir como possesso; como poderia então o espectador descobrir de que está possuído o possesso?


48 Em momento algum deve o ator transformar-se completamente na sua personagem. Para ele, deve ser desanimador um juízo como o que se segue: "Não, não desempenhava o papel de Lear, era o próprio Lear, em pessoa." O ator deve mostrar apenas a sua personagem, ou melhor, não deve vivê-la; o que não significa que, ao representar pessoas apaixonadas, precise mostrar-se frio. Somente os sentimentos pessoais do ator é que não devem ser, em princípio, os mesmos que os da personagem respectiva, para que os do público não se tornem também, em princípio, os da personagem. O público deve gozar, neste campo, de completa liberdade.


49 O ator está em cena como uma personagem dupla - Lau-ghton1 e Galileu -, o sujeito que faz a demonstração - Laughton - não desaparece no seu objeto - Galileu. Tudo isto, que deu a esta forma de representação a designação de "épica", não significa, enfim, outra coisa senão que o acontecimento real, profano, não será mais levado aos olhos do público: está em cena Laughton e mostra como imagina Galileu. Ao admirar Galileu, o público não esqueceria naturalmente Laughton, mesmo que este tentasse uma metamorfose completa; contudo, perderia, assim, as sensações e as opiniões do ator, completamente absorvidas pela personagem. O ator, neste caso, se apossaria das opiniões e dos sentimentos da personagem, de tal forma que resultaria deles, na realidade, um padrão único, que importa, depois, a nós. Para impedir que se dê tal atrofia, o ator tem de transformar o simples ato de mostrar num ato artístico. Utilizando uma forma de representação auxiliar, podemos completar com alguns gestos um dos aspectos da atitude dupla que referimos atrás - a do indivíduo que mostra -, para lhe conferirmos evidência. Se o ator estivesse fumando, largaria, de vez em quando, o charuto, para nos demonstrar ainda uma outra forma de comportamento da personagem simulada. Se dermos o devido desconto a qualquer precipitação e não pensarmos que tudo o que for lentidão é sinônimo de negligência, eis-nos perante um ator que poderá nos fazer abandonar, muito facilmente, tanto aos nossos como aos seus próprios pensamentos.


50 Há mais uma outra alteração que é necessário efetuar na transmissão de reproduções por meio do ator, alteração essa que vem dando ao processo um caráter mais profano. Assim como o ator não deve iludir o público de forma que este não o veja, mas à personagem fictícia no palco, também não deve simular que o que acontece no palco não é ensaiado, mas, sim, acontece pela primeira e única vez. A distinção de Schiller, segundo a qual o rap-sodo tem de conferir ao acontecimento que narra um tratamento que o faça surgir como algo completamente passado, enquanto o mímico deve conferir a este acontecimento um tratamento que o torne completamente presente, não revela atualmente qualquer pertinência. Ao representar, o ator deve fazer que fique completamente evidente o fato de "já no princípio e no meio saber o fim", e deve "conservar, assim, uma tranquila e absoluta liberdade". Por meio de uma representação viva, narra á história da sua personagem, mostrando saber mais do que esta, e apresentando o "agora" e o "aqui" não como uma ficção que é possível devido às regras da representação, mas, sim, tornando-os distintos do "ontem" e do "em outro lugar"; a associação dos acontecimentos se tornará, deste modo, mais clara.


51 O que dizemos é especialmente importante na apresentação de movimentos de massas ou em casos em que o meio ambiente sofra profunda modificação, como, por exemplo, em guerras e em revoluções. Ao espectador poderão ser, assim, apresentados tanto a situação global como o decurso global da ação. Ao ouvir, por exemplo, uma mulher falar, será possível imaginá-la também falando de outro modo, passada, por exemplo, uma semana, e será possível imaginar também outras mulheres, nesse momento, em outro lugar. Tal coisa será possível ao espectador se a atriz representar como se essa mulher tivesse vivido integralmente a época em que se insere e, agora, esteja a exprimir - só de lembrança, partindo da sua experiência dos acontecimentos ulteriores - o que, de entre as suas experiências, tem validade nesse momento. Só o que vem a ser importante depois é que é válido em cada momento. Só se pode distanciar a personagem apresentada e mostrá-la como "precisamente esta personagem" e como "precisamente esta personagem, neste preciso momento" quando não se produz qualquer ilusão: nem a ilusão de o ator ser a personagem, nem a de a representação ser o acontecimento.


52 Neste ponto, há que renunciar, porém, a mais uma ilusão, a de que qualquer pessoa atuaria como a personagem apresentada. O "eu faço isto" passou a ser "eu fiz isto", e agora há que transformar o "ele fez isto" em "foi isto o que ele fez, e não outra coisa". É de uma excessiva simplicidade as ações ajustarem-se ao caráter e o caráter às ações: as contradições que as ações e o caráter dos homens autênticos acusam, não poderão ser reveladas assim. Será impossível demonstrar as leis da dinâmica social em "casos ideais", pois a "impureza" (contradição) é, justamente, um atributo do movimento e de tudo o que é movido. É apenas necessário, absolutamente necessário, que se verifiquem, de um modo geral, condições de experiência, isto é, que haja possibilidade de conceder uma experiência contrária para cada caso, respectivamente. A sociedade é, desta forma, tratada como se o que faz, fosse feito por ela a título de experiência.

53 E mesmo que no ensaio se possa utilizar empatia para com a personagem (coisa que é preciso evitar na representação), ela deverá ser somente empregada como um método de observação entre muitos. A empatia é útil durante o ensaio - pois não foi a empatia que levou, pelo desmedido emprego que dela fez o teatro contemporâneo, a um desenho caracterológico refinadíssimo? A forma mais rudimentar de empatia manifesta-se quando o espectador pergunta apenas: "Como seria eu se isto ou aquilo me acontecesse? Que efeito faria eu se dissesse isto e fizesse aquilo?", ou qualquer coisa semelhante. Mas o que o ator deveria perguntar era: "Em que circunstâncias é que eu já ouvi uma pessoa dizer isto?" ou "Quando é que vi uma pessoa fazer aquilo?", para, desta forma, tirando daqui um elemento e dali outro, conceber uma nova personagem com a qual a história poderá também ter-se desenrolado. A unidade da personagem depende da forma como se contradizem entre si cada uma das suas particularidades.

54 A observação é um elemento essencial da arte de representar. O ator observa o seu próximo, com todos os seus músculos e nervos, num ato de imitação que é, simplesmente, um processo de pensamento. Se efetuar uma simples imitação, fará, quando muito, transparecer o objeto da sua observação aos olhos do público, o que não bastará, pois o objeto original possui sempre fraco poder de afirmação. Para passar do decalque à reprodução, o ator deve olhar para as pessoas como se elas lhe estivessem mostrando o que fazem, como se recomendassem que refletisse sobre o que fazem.

55 Sem juízos críticos e sem um objetivo bem determinado, é impossível fazer uma reprodução. Sem conhecimentos, não é possível mostrar coisa alguma; como discernir o que é que vale a pena saber? O ator que não deseje assemelhar-se a um papagaio ou a um macaco tem de adquirir os conhecimentos sobre convívio humano que são patrimônio da sua época, tem de adquiri-los participando da luta de classes. Tal coisa parecerá uma degradação a muitos, a todos os que põem a arte nos píncaros (só depois de acertadas as contas, claro). Mas é numa luta travada na Terra, e não nas nuvens, que se poderá decidir tudo o que é de fato importante para o gênero humano; uma luta travada no "exterior", e não nas cabeças. A ninguém é possível colocar-se num plano superior ao das classes que lutam, pois a ninguém é possível colocar-se num plano superior ao dos homens. A sociedade não terá um porta-voz comum enquanto estiver dividida em classes que lutam. Não ter partido, em arte, significa apenas pertencer ao partido dominante.

56 A escolha de uma perspectiva é, assim, outro aspecto essencial da arte de representar, escolha que terá de ser efetuada fora do teatro. Tal como a transformação da Natureza, a transformação da sociedade é um ato de libertação; cabe ao teatro de uma época científica transmitir o júbilo dessa libertação.


57 Prossigamos analisando, por exemplo, como é que o ator terá de ler seu papel em função dessa perspectiva. É importante que não o "compreenda" demasiado rapidamente. E, mesmo que descubra, logo à primeira vista, o tom mais natural para o seu texto, a maneira mais cômoda de dizê-lo, não deverá nunca pensar que as afirmações que deve proferir são as mais naturais; deverá, sim, hesitar e recorrer às suas opiniões próprias de ordem geral, deverá ter em conta todas as outras afirmações possíveis, em suma, assumir a atitude de quem se admira. Deve assumir uma atitude assim para não definir demasiado cedo - isto é, antes de ter registrado a totalidade das suas afirmações e, em especial, as das outras personagens - a sua personagem, à qual muito haveria depois a acrescentar, decerto; deve assumi-la, sobretudo, para incluir na estruturação da sua personagem a alternativa "não..., antes pelo contrário...", alternativa indispensável, caso se pretenda que o público, que representa a sociedade, veja o decurso dos acontecimentos sob um prisma em que estes lhe surjam como susceptíveis de serem influenciados. O ator, em vez de lançar mão apenas ao que com ele se harmoniza, de "tudo o que é pura e simplesmente humano", deve sobretudo recorrer ao que lhe não é harmônico, ao especial. Junto com o texto, terá de decorar suas primeiras reações, reservas, críticas e perplexidades, para que elas não venham a ser, porventura, banidas "por absorção" da configuração definitiva do seu papel e sejam, pelo contrário, conservadas, permanecendo perceptíveis. Tanto as personagens como os elementos cênicos devem apenas despertar a atenção do público, em lugar de arrebatá-la.


58 A aprendizagem de cada ator deve-se processar em conjunto com a dos outros atores, e, da mesma forma, a estruturação de cada personagem tem de ser conjugada com a das restantes. É que a unidade social mínima não é o homem, e sim dois homens. Também na vida real nos formamos uns aos outros.


59 Os maus hábitos que prevalecem nos nossos teatros ensinam-nos que uma das razões por que o ator reinante, a "estrela", sobressai, é o fato de se fazer servir por todos os demais atores; ao dar à sua personagem uma feição terrível ou sábia, compele os parceiros a darem uma feição receosa ou atenta às personagens que figuram. Para que todos possam gozar desta vantagem, e para beneficiar a fábula, os atores deviam trocar os papéis entre si nos ensaios, de modo que todas as personagens tivessem possibilidade de receber umas das outras tudo aquilo de que necessitam reciprocamente. Convém, igualmente, que os atores vejam suas personagens serem imitadas por outrem, ou que as vejam com outras configurações. Uma personagem desempenhada por uma pessoa do sexo oposto revelará o seu próprio sexo muito mais incisivamente; se for representada por um ator cômico, ganhará novos aspectos, quer trágicos, quer cômicos. Ao elaborar conjuntamente com a sua as outras personagens, ou, pelo menos, ao substituir os seus intérpretes, o ator consolida, sobretudo, a decisiva perspectiva social a que obedece o seu desempenho. Assim, o senhor será somente senhor na medida em que o criado o permitir, etc.


60 Quando a personagem surge entre as outras personagens da peça, já a sua estrutura foi submetida a inúmeras intervenções; o ator deverá, então, estudar todas as conjecturas que o texto tiver suscitado. Mas é sobretudo em função do tratamento que as outras personagens lhe dispensarem que fica conhecendo melhor a sua personagem.

61 Chamamos esfera do gesto aquela a que pertencem as atitudes que as personagens assumem em relação umas às outras. A posição do corpo, a entoação e a expressão fisionômica são determinadas por um gesto social; as personagens injuriam-se mutuamente, cumprimentam-se, instruem-se mutuamente, etc. Às atitudes tomadas de homem para homem pertencem, mesmo, as que, na aparência, são absolutamente privadas, tal como a exteriorização da dor física, na doença, ou a exteriorização religiosa. A exteriorização do "gesto" é, na maior parte das vezes, verdadeiramente complexa e contraditória, de modo que não é possível transmiti-la numa única palavra; o ator, nesse caso, ao efetuar uma representação necessariamente reforçada, terá de fazê-lo cuidadosamente, de forma a nada perder e a reforçar, pelo contrário, todo o complexo expressivo.


62 O ator apodera-se da sua personagem acompanhando com uma atitude crítica as suas múltiplas exteriorizações; e é com uma atitude igualmente crítica que acompanha as exteriorizações das personagens que com ele contracenam e, ainda, as de todas as demais.


63 Para melhor conceber o conteúdo do gesto, percorramos as cenas iniciais de uma peça moderna, de minha autoria, A Vida de Galileu Galilei. E já que o nosso propósito é verificar também como as diferentes formas de exteriorização se esclarecem reciprocamente, partamos do princípio de que não se trata de um primeiro contato com a peça. Esta principia com as abluções matinais de um homem de quarenta e seis anos, que as interrompe a certa altura para vasculhar alguns livros e dar ao jovem Andrea Sarti uma lição sobre o novo sistema solar. Para desempenhar esta cena, não é verdade que o ator deve saber que a peça termina com a ceia de um homem de setenta e oito anos, a quem esse mesmo aluno terá acabado, precisamente, de deixar para sempre? Iremos encontrá-lo, então, modificado, modificação muito mais terrível do que a que poderíamos esperar que se produzisse durante este período de tempo. É com uma gula irrefreável que devora a comida, com o pensamento alheio a tudo o que não seja comer; desembaraçou-se da sua missão didática de forma ignominiosa, como se se tratasse de um fardo, e pensar que é o mesmo que outrora tomava distraído o leite, ao café da manhã, ávido de ensinar o jovem discípulo! Mas estará de fato distraído, ao tomar o leite? O prazer que sente em beber e em lavar-se não se identificará com o que sente devido aos novos pensamentos que o tomam? E não esqueçamos, também, que ele pensa pela voluptuosidade de pensar! Tal circunstância parece merecer apreço ou censura? Aconselho a que a apresente como algo que merece apreço, uma vez que ao longo de toda a peça nada encontrará que a revele desvantajosa para a sociedade e, sobretudo, porque o próprio ator - assim o espero - é um digno filho desta era científica. Note bem, muitas e terríveis coisas se vão passar. O fato de o homem que saúda agora a nova era ser obrigado, no fim, a lançar-lhe um repto, e de esta repeli-lo com desdém - se bem que expropriando-o, simultaneamente, da sua obra - relaciona-se diretamente com esses acontecimentos. No que respeita à lição, o ator terá que decidir se ela brota de um coração repleto, que não consegue travar a língua e que diria o mesmo a quem quer que fosse, neste caso até a uma criança, ou se é esta criança que tem de levá-lo a revelar-lhe o seu saber, mostrando-se interessada, como boa conhecedora que é da sua personalidade. E pode também dar-se o caso de se tratar de duas pessoas que não conseguem conter-se, uma de fazer perguntas, a outra de responder; tal afinidade seria interessante, pois haveria uma altura em que seria gravemente lesada. Decerto o ator concordará em fazer, um tanto precipitadamente, a demonstração do movimento de rotação da Terra, pois esta não lhe rende nada; surge então o discípulo estrangeiro rico, que paga a peso de ouro o tempo do sábio. Embora este não mostre interesse pelos seus ensinamentos, Galileu não pode deixar de atendê-lo, uma vez que se encontra sem quaisquer recursos; assim o vemos dividido entre o aluno rico e o aluno inteligente, e o vemos escolher entre ambos com um suspiro. Não pode ensinar muita coisa ao novo discípulo, e é, antes, este que lhe ensina: através dele toma conhecimento da existência do telescópio, descoberto na Holanda. Tira, assim, partido, à sua maneira, da perturbação que sobreveio ao seu trabalho matinal. Aparece o Curador da Universidade. A petição de Galileu solicitando aumento de ordenado foi indeferida, a Universidade não dá de bom grado por teorias físicas a mesma quantia que paga pela teologia; dele, que se move num plano subestimado da investigação, apenas solicita algo que tenha utilidade para o dia-a-dia. Pela maneira como apresenta o seu tratado, notará que Galileu está habituado às recusas e às repreensões. O Curador aponta-lhe o fato de a República conceder liberdade de investigação, se bem que remunerando mal; Galileu responde que pouca coisa pode fazer com esta liberdade, desde que não disponha do tempo necessário que provém de uma boa remuneração. Convém que não atribua à impaciência de Galileu um caráter demasiado sobranceiro, senão a sua pobreza fica em segundo plano. Momentos depois ele está preso a lucubrações que precisam de uma explicação. O arauto de uma nova era de verdades científicas pondera acerca da possibilidade de burlar a República, apresentando-lhe o telescópio como invenção sua. Verificará que esta nova invenção, que ele estuda visando, unicamente, a dela se apoderar, não significa para Galileu senão a maneira de ganhar alguns ducados. Porém, se passar à segunda cena, verá que, ao vender à Signoria de Veneza esta invenção, com um discurso que as mentiras aviltam, quase esqueceu o dinheiro, pois descobriu que o instrumento, além de ter uma importância militar, é também valioso no campo da astronomia. A mercadoria que fabricou como que por chantagem, chamemos finalmente as coisas pelo seu nome, parece-lhe agora excelente para a investigação que tivera de interromper para fabricá-la. Ao aceitar, lisonjeado, durante a cerimônia, as honras imerecidas, ao apontar ao sábio seu amigo as suas maravilhosas descobertas - repare bem em sua atitude teatral, descobrirá nela sua excitação muito mais profunda do que a que foi provocada pela perspectiva de lucro pecuniário. E, mesmo que a sua charlatanice pouco signifique sob este aspecto, ela revela a que ponto este homem está decidido a escolher o caminho mais fácil e a utilizar a sua razão tanto de uma forma inferior como de uma forma superior. Uma prova mais significativa está iminente, e não é verdade que uma fraqueza conduz a outra fraqueza?


64 É com uma interpretação como a que acabamos de realizar, expondo o "gesto" que informa a ação, que o ator se apodera da personagem, ao apoderar-se da "fábula". Só a partir desta, do acontecimento global delimitado, o ator consegue chegar, como de um salto, à personagem definitiva, que funde em si todos os traços particulares. Se o ator tudo fez para surpreender-se com as contradições contidas nas diversas atitudes - consciente de que terá também de levar o público a surpreender-se com elas -, encontra na fábula, encarada como um todo, uma possibilidade de associação dos aspectos contraditórios. Na medida em que a fábula é um acontecimento restrito, dela resulta um sentido bem determinado, ou seja, a fábula, entre vários interesses possíveis, satisfaz apenas certos e determinados interesses.

65 Tudo depende da "fábula", que é o cerne da obra teatral. São os acontecimentos que ocorrem entre os homens que constituem para o homem matéria de discussão e de crítica, e que podem ser por ele modificados. Mas o homem particularizado que o ator desempenha ajusta-se, ao fim, a mais do que apenas àquilo que acontece; e, se é preciso ajustá-lo apenas ao que acontece, é porque a ocorrência é tanto mais sensacional quanto se realiza num homem particularizado. A tarefa fundamental do teatro reside na "fábula", composição global de todos os acontecimentos-gesto, incluindo juízos e impulsos. E tudo isto que, de ora avante, deve constituir o material recreativo apresentado ao público.

66 Cada acontecimento comporta um "gesto" essencial. Richard Gloster corteja a viúva da sua vítima. Por meio de um círculo de giz, é descoberta a verdadeira mãe da criança. Deus aposta com o Diabo a alma do Dr. Fausto. Woyzek compra uma faca barata para assassinar a mulher, etc. Pela agrupação das personagens em cena e aos movimentos de grupo, há que alcançar a necessária beleza, principalmente através da elegância, da elegância com que são apresentados e expostos ao olhar do público todos os elementos que constituem esse "gesto".


67 Visto que o público não é solicitado a lançar-se na fábula, como se fosse num rio, e a deixar-se levar à deriva, os acontecimentos isolados têm de ser interligados de tal forma que as funções sejam evidentes. Os acontecimentos não devem seguir-se de maneira imperceptível, devemos, sim, ter a possibilidade de intervir neles com os nossos juízos críticos. (E, a dar-se o caso de o caráter obscuro das relações causais se revestir para nós de interesse, haveria que dar a essa circunstância um distanciamento suficiente.) Devemos, então, contrapor cuidadosamente as diversas partes da fábula, dando-lhes uma estrutura própria, a de uma pequena peça dentro da peça. Para atingirmos este objetivo, a melhor maneira é adotarmos títulos, como os que encontramos no item precedente. Os títulos devem conter flechas certeiras, dentro de uma perspectiva social, e explicitar, simultaneamente, algo acerca da forma de representação desejável, isto é, devem imitar, consoante o caso, o estilo do título de uma crônica, de uma balada, de um jornal ou de um quadro de costumes. O tipo de representação a que os usos e os costumes são comumente submetidos suscita facilmente o efeito de distanciamento. É possível apresentar uma visita ou a maneira de lidar com um inimigo, ou um encontro de namorados, ou quaisquer negociações comerciais ou políticas, como um costume típico em determinado local de ação. Apresentado deste modo, o acontecimento único e especial assume um aspecto "estranho", pois surge como algo geral, algo que se tornou um costume. Já o fato de se perguntar se é ao próprio acontecimento, ou a qualquer aspecto dele, que deverá ser dado o alcance de um costume, distancia esse acontecimento. Nas barracas de feira chamadas panoramas encontramos um exemplo de estilo histórico poético. Como o ato de distanciar significa também conferir celebridade a um acontecimento, é possível, desta forma, apresentar certos acontecimentos simples como se fossem célebres, como se fossem universais e conhecidos há muito, e como se nos esforçássemos por não infringir, em ponto algum, a tradição. Em suma, são possíveis muitas formas de narração: algumas já são conhecidas, outras ainda estão por serem inventadas.


68 A determinação de qual o aspecto a distanciar e como fazê-lo depende da interpretação dada ao acontecimento global, e é aí que o teatro pode e deve defender vigorosamente os interesses da sua época. Citemos como exemplo de uma interpretação deste tipo uma peça antiga, o Hamlet. À luz dos tempos que correm e em que estou escrevendo estas linhas, tempos sangrentos e tenebrosos, à luz da existência de classes dominantes criminosas e de uma desconfiança generalizada na razão, da qual continuamente se abusa, creio poder ler esta fábula da seguinte forma: está-se em tempo de guerra. O pai de Hamlet, rei da Dinamarca, abateu, numa guerra de pilhagem, para ele vitoriosa, o rei da Noruega. Quando o filho deste, Fortinbras, se arma para uma nova guerra, o rei da Dinamarca é também derrubado, e pelo seu próprio irmão. Os irmãos dos reis assassinados, agora de posse do trono, fazem que a guerra se desvie noutro sentido; as tropas norueguesas obtêm permissão de atravessar o território dinamarquês para realizarem uma incursão na Polônia. Mas o jovem Hamlet é então chamado pelo espírito do seu belicoso pai a vingar o crime contra ele perpetrado. Após uma certa hesitação em responder a um ato sangrento com outro ato igualmente sangrento, e estando, mesmo, disposto a partir para o exílio, encontra na costa do seu país o jovem Fortinbras, que vai a caminho da Polônia com as suas tropas. Sugestionado por esse exemplo, volta atrás e, numa bárbara carnificina, liquida o tio e a mãe, e liquida-se a si próprio, deixando a Dinamarca à mercê do norueguês. Esses acontecimentos nos mostram o jovem Hamlet, que, contudo, já é um homem feito, a utilizar, de forma absolutamente insuficiente, a nova visão racional que adquirira na Universidade de Wittenberg. Tal visão é para ele um obstáculo nas questões de caráter feudal às quais regressa. Perante a práxis irracional, a sua razão é por completo improcedente. Tomba tragicamente, sacrificado à contradição entre uma forma de raciocínio e outra forma de ação. Esta maneira de ler a peça (que admite mais de uma forma de leitura) poderia, a meu ver, interessar o nosso público.


69 Todos os avanços, toda e qualquer emancipação da natureza, no domínio da produção, que levem a uma transformação da sociedade, todas as tentativas orientadas numa nova direção, que têm sido empreendidas pela humanidade para melhorar o seu destino, conferem-nos um sentimento de triunfo e de confiança e nos proporcionam a fruição das possibilidades de transformação de todas as coisas, quer a literatura nos descreva essas tentativas como bem sucedidas, quer como malogradas. É exatamente isto o que Galileu exprime quando diz: "Em meu parecer, a Terra é algo muito nobre e digno de admiração, em vista das muitas e variadas modificações e gerações que nela surgem, continuamente."


70 A interpretação da fábula e a sua transmissão por intermédio de efeitos de distanciamento adequados deverão ser a tarefa capital do teatro. Mas não é o ator que precisa fazer tudo, ainda que nada se deva fazer que não esteja com ele relacionado. A fábula é interpretada, produzida e apresentada pelo teatro como um todo, constituído pelos atores, cenógrafos, maquiladores, encarregados dos guarda-roupas, músicos e coreógrafos. Todos eles conjugam as suas artes para um empreendimento comum, sem renunciar, no entanto, à sua autonomia.


71 O gesto geral da demonstração, que sempre acompanha o gesto do que está sendo mostrado em particular, é realçado por meio de apelos musicais dirigidos ao público nas canções. Os atores jamais devem fazer uma passagem natural da fala para o canto; devem, sim, destacá-lo nitidamente do restante, através de recursos cênicos adequados, como, por exemplo, mudança de iluminação ou emprego de títulos. A música, por seu turno, tem de resistir por completo à "sintonização" que lhe é geralmente exigida e que a degrada, tornando-a um autômato subserviente. A música não deve "acompanhar", a não ser por comentários. Não deve contentar-se com "exprimir-se", esvaziando-se, pura e simplesmente, do tom emocional que lhe sobrevêm durante os acontecimentos. Eisler, por exemplo, cuidou, de forma exemplar, da associação dos acontecimentos, compondo uma música triunfante e ameaçadora para as cenas do Entrudo do Galileu Galilei, para o desfile de máscaras das corporações, música que revela como a plebe deu às teorias astronômicas do sábio um novo teor revolucionário. Identicamente, no Círculo de Giz Caucasiano, o modo frio e indiferente com que o cantor canta, ao descrever o salvamento da criança pela criada, apresentado no palco sob a forma de pantomima, põe a nu todo o horror de uma época em que a maternidade pode transformar-se em fraqueza suicida. A música pode, assim, revestir-se de diversas formas, sem perder a sua independência. Pode também adotar uma atitude, a seu modo, em relação aos temas. Mas sua única preocupação pode ser também a de tornar variada a diversão.

72 Tal como o músico readquire a sua liberdade não tendo de criar estados de alma que facilitem ao público abandonar-se irresistivelmente aos acontecimentos em cena, o cenógrafo passa igualmente a dispor de grande liberdade, se não tiver que conseguir a ilusão de um quarto ou de uma paisagem, ao montar a cena. Bastam-lhe alusões; estas alusões devem, contudo, ser um testemunho histórico ou social muito mais incisivo do que o ambiente real. No teatro judeu de Moscou conseguiu-se o efeito de distanciamento do Rei Lear com uma construção cênica que sugeria um tabernáculo medieval. Neher colocou Galileu à frente de projeções de mapas, documentos e obras de arte da Renascença. No Teatro Piscator, Heartfield empregou, em Tai Yang Desperta, um fundo de bandoleiras giratórias com dísticos que indicavam as modificações da situação política, desconhecida, por vezes, das pessoas em cena.

73 Também à coreografia advêm, de novo, obrigações de caráter realista. É um equívoco afirmar, como se tem feito ultimamente, que a coreografia não é chamada para uma reprodução dos "homens tal como são na realidade". Arte, quando espelha a vida, o faz com espelhos especiais. A arte não deixa de ser realista por alterar as proporções, deixa, sim, quando as altera de tal modo que o público, ao utilizar as reproduções, na prática, em ideias e impulsos, naufraga na realidade. Evidentemente, é necessário que a estilização não suprima a naturalidade do objeto, mas, sim, que a intensifique. Porém, seja qual for o caso, a verdade é que um teatro que tudo extrai do gesto não pode prescindir da coreografia. A elegância de um movimento e a graça de determinada disposição coreográfica são, já em si, efeitos de distanciamento, e a invenção pantomímica é um precioso auxiliar da fábula.

74 Há, pois, que intimar todas as artes afins da arte dramática a não produzirem uma "obra de arte global", na qual todas renunciem a si próprias e se percam, mas, sim, a promoverem, nas suas diversas formas, em conjunto com a arte dramática, uma missão comum. As relações que devem manter entre si consistem em se distanciarem reciprocamente.

75 Mais uma vez deve ser lembrado que essa missão é a de recrear os filhos de uma era científica, proporcionando-lhes o prazer dos sentidos e a alegria. Não serão nunca demasiadas as vezes que repetiremos, a nós próprios, alemães, esta recomendação, pois, entre nós, tudo resvala muito facilmente para o plano do imaterial e do abstrato, a ponto de nos pormos a falar de uma mundivivência, mesmo depois de o mundo já se ter desintegrado. O próprio materialismo, entre nós, quase não vai além de uma ideia. Do prazer sexual extraímos deveres conjugais, o prazer artístico está ao serviço da cultura, e aprender não significa conhecer aprazivelmente, mas, sim, aferrar o nariz ao objeto do conhecimento. Nada do que fazemos representa um esforço aprazível, e, para justificarmos os nossos atos, não invocamos o que gozamos com isto ou com aquilo, mas, sim, quanto suor nos custou.


76 Há ainda outra questão a abordar: a entrega ao público do que se preparou nos ensaios. É necessário que o gesto de entregar algo já concluído esteja sempre subjacente à representação propriamente dita. Perante o espectador surge, agora, tudo o que não foi rejeitado e que foi submetido a múltiplas repetições; as reproduções concluídas devem, pois, ser apresentadas com absoluta lucidez, para que possam ser recebidas com lucidez.

77 Ou seja, as reproduções devem ceder passo ao que está sendo reproduzido, ao convívio dos homens, e o prazer da sua perfeição deve ser elevado ao nível de um prazer superior, que deriva da circunstância de as normas que se manifestaram neste convívio humano serem tratadas como provisórias e imperfeitas. Por esta forma superior de prazer o teatro leva o seu espectador a uma atitude fecunda, para além do simples ato de olhar. No seu teatro o espectador poderá recrear-se, como se se tratasse de uma diversão, com as tremendas e infindáveis canseiras que lhe hão de dar a subsistência, e com o pavor que lhe inspira a sua interminável transformação. Num teatro deste tipo o espectador tem a possibilidade de formar a si próprio da maneira mais simples, pois a forma mais simples de existência é a arte que no-la proporciona.

(1948)