O Depoimento Pessoal no Teatro da Vertigem

Por Cleber Lima

    A dimensão etimológica da expressão depoimento pessoal remete a testemunho individual, particular, íntimo, sobre alguma experiência vivenciada pelo indivíduo e que pode ter ocorrido de forma participativa ou observada. No contexto das artes cênicas, podemos considerar o depoimento pessoal enquanto princípio de criação, haja vista sua utilização como eixo norteador em procedimentos como as improvisações e workshops. A princípio, podemos considerar então, a ideia de uma cena com forte teor pessoal, onde as experiências, memórias e subjetividade do ator são os eixos norteadores para a proposição e realização das ideias encenadas. Apesar deste enfoque de pessoalidade no trabalho do ator adquirir maior destaque e visibilidade a partir da segunda metade do século XX, Constantin Stanislavski (1863-1938) já preconizava, sob a perspectiva de um teatro naturalista, a associação das experiências e vivências pessoais com as características dadas da personagem, no processo de criação do ator, o que em seu sistema era chamado inicialmente de memória afetiva e após um período de experimentação e estudos sobre o ofício do ator, é associado à ideia de ações interiores. Nesse caso, o trabalho do ator consiste em, partindo de suas memórias históricas e afetivas, compreender a personagem em todas as suas dimensões, e após um período de treinamento, passe a vivenciá-la de maneira que a personagem fictícia se sobreponha ao ator.

    Jerzy Grotowski (1933-1999), explorando e ampliando esta abordagem do sistema stanislavskiano, propõe a noção de retomada do duplo corpo-mente, a partir de treinamentos e exercícios específicos que valorizem as características e experiências pessoais do intérprete, considerado pelo encenador polonês mais como um performer. Entendemos que nesta abordagem, a ideia de performer esta intimamente ligada à ideia de um duplo “eu-eu” que, segundo o encenador, ao mesmo tempo de observa, age; que é receptivo durante a ação e presente durante a observação. GROTOWSKI (1996) aponta que “para nutrir a vida do Eu-Eu, o Performer deve desenvolver, não um organismo-matéria, um organismo de músculos, atlético, mas um organismo-canal através do qual as energias circulam, as energias se transformam e o sutil é tocado”. Podemos identificar então, na abordagem grotowskiana, a potencialização da presença física e emocional do intérprete no processo de criação, ocasionando a diluição dos limites entre intérprete e personagem, realidade e ficção.

    No contexto dos movimentos de contracultura na virada de década de 60 para 70, surge a Performance Art, que vai intensificar e radicalizar a ideia do depoimento pessoal, potencializando a presença do performer através do uso de seu corpo e de elementos biográficos (memórias, arquivos pessoais, etc.) na realização das performances. PAVIS (1999) afirma que “num sentido mais específico, o performer é aquele que fala e age em seu próprio nome (enquanto artista e pessoa) e como tal se dirige ao público, ao passo que o ator representa sua personagem e finge não saber que é apenas um ator de teatro. O performer realiza uma encenação de seu próprio eu, o ator faz o papel de outro”. Podemos considerar então, que o depoimento pessoal é um dos eixos norteadores da performance, na medida em que o acontecimento performático é permeado pelas experiências históricas e afetivas do performer que se coloca não enquanto personagem mas sim enquanto pessoa, posicionando-se diante de fatos e questões que o envolvem. Neste sentido, COHEN (2007) aponta que na performance “o trabalho passa a ser muito mais individual. É a expressão de um artista que verticaliza todo seu processo, dando sua leitura de mundo, e a partir daí criando seu texto (no sentido sígnico), seu roteiro e sua forma de atuação”. Essa perspectiva de “presentificação” engendrada pelo performer também influenciará os processos de criação no teatro. LEITE (2012)  afirma que “a mudança paradigmática das artes no século XX diz respeito à substituição da tríade criatividade/meio/invenção pela tríade atitude/prática/desconstrução. Neste sentido, cada vez mais o artista é convocado a se colocar. Ele assume sua obra, seu discurso, se despe dos personagens e, em seu próprio nome, assume a “cena” para trazer sua visão de mundo, sua história, seu próprio corpo marcado por essa história e visão.”

    Após esta breve reflexão contextual sobre o depoimento pessoal, podemos arriscar uma síntese provisória sobre três diferentes perspectivas abordadas até aqui: em Stanislavski há um processo de associação entre os elementos constitutivos do ator e da personagem, sendo que no resultado estético a personagem sobressai; em Grotowski há uma busca pela potencialização do duplo corpo-mente, resultando na diluição dos limites entre personagem e intérprete; e na Performance Art há um processo de presentificação que resulta na eliminação da personagem em contraposição a presença física e emocional do performer. Esta última abordagem se coloca como campo fértil para o depoimento pessoal na medida em que a ação performática é resultado direto do posicionamento do performer em relação ao outro, ao espaço, ao mundo e a si próprio. Ora, nessa experiência relacional, um dos lados do diálogo tem origem justamente nos princípios, memórias, experiências e vivências do performer, que são colocados no jogo de relações proposto, materializando-se um verdadeiro depoimento autoral. Nas últimas décadas, esse movimento performático vem influenciando cada vez mais as artes cênicas. Consequência disto são os novos estudos e perspectivas sobre a cena contemporânea, como o teatro pós-dramático  proposto pelo alemão Hans-Thies Lehmann ou o teatro performativo proposto pela francesa Josette Feral. Em ambos os casos, guardadas as devidas distâncias e proximidades, é comum a perspectiva performática relativa à presença do intérprete, ao uso de suas referências memoriais e vivenciais no processo de criação e na resultante estética.

    Nesse panorama de “contaminação” do teatro pela performance é que a encenadora, coreógrafa e bailaria Pina Bausch (1940-2009) irá utilizar o depoimento pessoal como o principal eixo norteador de seus processos de criação na dança-teatro (tanztheater). Trata-se de um estilo artístico que funde movimentos e elementos do cotidiano em suas coreografias. Através da dança, a encenadora alemã constrói uma dramaturgia composta pelas experiências individuais de seus bailarinos, materializadas através de improvisações, selecionadas e editadas pela encenadora-coreógrafa e que resulta numa peça. A dinâmica se dá a partir de um jogo de perguntas e repostas, através do qual a encenadora elabora perguntas elaboradas a partir de temas previamente estabelecidos por ela ou a partir de “pistas temáticas” ainda não consolidadas, que estimulam os bailarinos a reavivarem suas memórias e experiências para responderem cenicamente, por meio de improvisos.  Nestas improvisações, os bailarinos são estimulados constantemente a acessar e redescobrir suas memórias e assumir um posicionamento individual sobre elas. A respeito desta estratégia, CALDEIRA (2009) afirma que “Bausch faz com que seus artistas venham habitar o objeto-tema, observando que todas as perspectivas individuais apresentadas formam um sistema ou um mundo de olhares que perspectivam o referido objeto”. Percebe-se que as perguntas, no processo de criação proposto por Pina Bausch, são estímulos que geram outras perguntas mentais nos bailarinos, que por sua vez se concretizam em ações externas, expressão de suas memórias e experiências, e não a materialização de personagens fictícios. SÁNCHEZ (2010) afirma que “cada um a seu modo cria seu “material”, fazendo-o evoluir da sua própria vivência, aperfeiçoando-o, subvertendo-o. O criador-executante-sujeito trabalha assim apenas sobre si mesmo, passando pelos filtros dispostos pela coreógrafa. Ele deve aprimorar a forma, personaliza-la nas motivação, sob a condição de trazer à cena sua experiência particular”. As perguntas utilizadas por Bausch em seus processos transitam entre diferentes perspectivas. Podem envolver tanto aspectos pessoais, sociais, culturais, políticos etc., porém, a maioria dispara um processo de lembrança, como relata FERNANDES (2007): “muitas das questões de Bausch implicam relembrar: “Como era a sua infância”? ou “Pessoas importantes na sua vida”. Essas improvisações são, então, baseadas nas histórias pessoais dos dançarinos. Muitas das questões – por exemplo “Como era o seu país”? – contextualizam essas lembranças em seus ambientes sociais e culturais. Outras remetem mais diretamente à vida emocional dos dançarinos, também implicando lembrança. Tais questões instigam a memória emocional e sua transformação em linguagem simbólica”. Assim, percebe-se a importância do depoimento pessoal enquanto princípio norteador no processo de criação da dança-teatro de Pina Bausch na medida em que direciona a dinâmica de trabalho proposta, envolvendo o resgate de memórias e sua materialização cênica.

    Nos processos de criação do Teatro da Vertigem, o depoimento pessoal encontra algumas consonâncias com a abordagem do princípio em Pina Bausch, principalmente no que se refere ao estímulo do posicionamento individual perante os temas investigados e o aproveitamento de parte das memórias e experiências pessoais dos atores, colocadas em jogo, através das improvisações e workshops, para a construção da dramaturgia e da própria encenação. Para o Vertigem, o depoimento pessoal exige que o ator assuma uma posição, critique, emita uma impressão ou sensação sobre o núcleo temático investigado em cada processo de montagem. Nesse sentido, ARAÚJO (2011), sobre o processo de criação em “O Paraíso Perdido” (1992), afirma que no “lugar de um ator que simplesmente executasse indicações dramatúrgicas ou cênicas, buscávamos um ator opinativo e com proposições. Para tanto, além do viés crítico, o ator recorreria à sua história pessoal para a realização de cenas e workshops que, por sua vez, colaborariam na construção coletiva do próprio espetáculo”. Percebe-se, assim como no processo bauschiano, a contribuição do depoimento pessoal para o processo de pesquisa e investigação do núcleo temático, e também para a proposição e elaboração de material criativo que acaba incorporado na encenação, como relata o próprio encenador:

“É importante perceber como a perspectiva do “Paraíso como infância” vai se destacando e ganhando espaço sobre todos os outros aspectos. Talvez a razão central para isso se encontre na própria abordagem do depoimento pessoal. A volta ao passado, o trabalho com a memória, a arqueologia com os “baús” de cada ator, estimulava o afloramento de um material ligado à infância que, no caso, também se adequava a uma possível leitura da problemática do Paraíso”. (ARAÚJO, 2011, p.124)

 

    Como consequência, têm-se um ator que não apenas representa, mas que realiza um “depoimento artístico autoral”, aproximando-se da ideia de performer, criador e intérprete, ou como define o encenador do Teatro da Vertigem , um a(u)tor. RINALDI(2005) argumenta que o depoimento pessoal no Teatro da Vertigem “é para o ator, uma qualidade de presença cênica, de expressão de uma visão particular ou de um posicionamento frente à determinada questão. O depoimento pessoal é uma qualidade de exposição de si próprio”. A atriz também relata algumas dinâmicas do depoimento pessoal no processo de criação do grupo: “muito do material pode nos remeter a sensações a respeito do tema, por vezes com grande poder simbólico, não chegando a uma narrativa linear. Ou, quando acontece de esse material advir da biografia do artista, pode ocorrer uma carga emocional inerente, que participa dessa associação. Outras vezes, o depoimento pode vir da leitura de um texto escrito pelo ator, numa circunstância que aparentemente afasta qualquer emotividade. Portanto, não há forma pré-estabelecida para o depoimento”. Segundo Antônio Araújo, a dinâmica do depoimento pessoal no grupo ocorre de seguinte forma:

 

·         é desenvolvido a partir das relações e dos confrontos dos atores e dos outros criadores com os conteúdos e temas do projeto (ex.: “qual é a sua ideia de Paraíso?”);

·         utiliza componentes subjetivos específicos (os sentidos, os sentimentos e a imaginação de cada um), procurando proporcionar um mergulho interno do ator em relação aos assuntos tratados;

·         resgata a memória pessoal, por meio da retomada de histórias individuais passadas, de objetos antigos da infância e juventude (com os quais exista uma relação significativa) e de registros subjetivos os mais remotos;

·         exercita a reflexão crítica e conceitual com respeito aos temas, por meio de um posicionamento individual, tanto nos debates e discussões em grupo como nas improvisações e workshops;

·         enfatiza, nas leituras obrigatórias e apresentação de seminários, uma reelaboração própria e particular do material estudado. (ARAÚJO, 2011, p.111-2)

 

    Por mais paradoxal que pareça, já que se trata de um grupo de teatro que desenvolve suas encenações a partir do processo colaborativo, é justamente no diálogo entre as proposições individuais que o grupo constrói seu depoimento coletivo.  A dramaturgia e a direção têm papel fundamental nesta dinâmica, no sentido de estimular os posicionamentos pessoais e encontrar estratégias para criar “pontes” que possam estabelecer o diálogo criativo entre estas individualidades. Outro aspecto a ser ressaltado na prática norteada pelo depoimento pessoal é que os atores são estimulados a um desprendimento, a uma abertura no sentido de compartilharem suas histórias, memórias e experiências íntimas com os demais integrantes do grupo, o que corrobora para a instauração de um pacto tácito, um compromisso entre todos, de respeito e lealdade, que se traduz em comprometimento em relação ao sigilo sobre o que é aberto ao grupo e em relação à condição de que todos devem realizar seus depoimentos pessoais. Sobre a dinâmica e importância do depoimento pessoal no Teatro da Vertigem, seguem alguns depoimentos de atores registrados por Miriam Rinaldi [in NESTROVSKI (2002)]:

 

Durante o processo de criação de Apocalipse 1,11, deparei com questões que me acompanham no decorrer da vida. Me tornei um vulcão em erupção constante: meus segredos, minhas conquistas, emoções, frustrações, meus desejos e fantasias escorriam descontroladamente. A instabilidade e a liberdade faziam parte de meu processo de autoconhecimento. [Roberto Audio]

 

O depoimento pessoal é a possibilidade de o ator se colocar na obra de uma forma tanto consciente como inconsciente. Ele dá margem para o ator/artista fazer de seu ofício uma ferramenta de auto-análise e de transformação. [Vanderlei Bernardino]

 

Depoimento pessoal é sua colocação como ser humano, como cidadão e artista. Muitos depoimentos viraram personagens, como a Talidomida do Brasil. Eu queria falar de uma coisa pessoal e fiz aquela menina torta. É deixar que sua experiência vire arte, seja manipulada. [Mariana Lima]

 

O depoimento pessoal não precisa necessariamente se fixar em situações vividas pelo artista; também situações análogas - o outro, a rua - são fontes de inspiração. [Luciana Schwinden]

 

Sou negro e interpreto um negro humilhado. Essa personagem me oferece a dimensão de meu papel como artista. As palavras do texto me fazem estar permanentemente vivo, como se a cada espetáculo se reafirmasse uma condição que precisa ser mudada e de que nenhum negro, seja qual for sua classe social, está livre. [Luis Miranda]

 

A falta de pudor, proposta pela direção e abraçada pelos atores, faz com que toda dificuldade seja motivadora. Às vezes era muito dicil ver um amigo em tamanha exposição, e, por isso mesmo, me expor ao extremo se tornou uma questão de respeito. Nos apoiamos nos silêncios ou em brincadeiras, para aprender a lidar com o desconhecido. Percebia que a cada dia o grupo se tornava mais forte, à medida que trabalhávamos com nossas fraquezas. [Roberto Audio]