O Estranhamento no Teatro da Vertigem

Por Cleber Lima

 

Este documento trata-se de um verbete hipertextual sobre o procedimento de “estranhamento” identificado nas encenações do Teatro da Vertigem e fundamentado por nós a partir da abordagem de Brecht, Pavis e Koudela. Esse hipertexto tem seu caráter processual valorizado na medida em que não o colocamos como texto pronto, mas sim como em construção, inclusive com o auxílio dos integrantes do experimento no qual será utilizado. Propomos referências, através de hiperlinks, a textos teóricos, trechos de roteiro das peças do Teatro da Vertigem, trechos de vídeos e imagens que contribuam para o clareamento do procedimento em foco.

    O termo estranhamento vem sendo analisado e empregado por vários estudiosos e coletivos de produção cênica, enquanto procedimento de criação, já há algum tempo. O conceito esta diretamente relacionado à atitude ou ato de estranhar ou distanciar, o que nos sugere, a princípio, o efeito de deslocamento de uma zona conceitual conhecida, familiar, para outra desconhecida, não familiar, gerando assim uma tensão, um desconforto no receptor. Podemos considerar o estranhamento enquanto essa tensão causada pelo encontro/confronto de um elemento estrangeiro ao contexto em que esta sendo inserido.

    Transferindo esta ideia para o contexto teatral, o estudo sobre as estéticas da cena medieval, da comédia popular renascentista ou até mesmo do teatro oriental, onde podemos identificar um forte caráter simbólico caracterizado pelo uso frequente de gestos codificados e extremamente formais, evidencia algumas variações do efeito de estranhamento. Segundo PAVIS (1999)  , este é um procedimento aplicável a qualquer linguagem artística, mas no que se refere ao teatro, ele abrange diferentes maneiras de “quebrar”, diminuir ou até mesmo anular a ilusão ou, em outras palavras, não provocar a identificação do receptor com a cena, distanciando-se da “impressão de uma realidade cênica” e revelando “os artifícios da construção dramática ou da personagem”.

    Em relação à terminologia, podemos encontrar também o efeito de distanciamento, que segundo PAVIS (1999), é equivalente ao estranhamento. Para o autor, trata-se de “um procedimento estético que consiste em modificar nossa percepção de uma imagem literária”, ou seja, trata-se de um efeito que modifica nossa percepção sobre o que nos é mostrado na cena, distanciando-nos da esfera do entendimento ou apreensão comuns, familiares a nós.

    Para o alemão Bertolt Brecht (1898-1956), grande encenador do século XX, o estranhamento ou distanciamento ocupará lugar de destaque na formulação de seu teatro épico. Para Brecht, o teatro deveria ser um instrumento de transformação social e que, portanto deveria encontrar maneiras de esclarecer o povo, resgatar sua consciência crítica e não iludir com realidades fictícias e nem alienar através da identificação emocional e psicológica proposta pelo teatro de registro mais realista. Neste sentido, segundo KOUDELA (2010), o estranhamento para Brecht “se diferencia pelo fato de chamar a atenção para processos sociais”, ou seja, a importância do procedimento reside justamente em sua capacidade de “quebrar” a identificação e consequentemente a ilusão, provocando o distanciamento necessário para que se reflita, de maneira crítica, sobre aquilo que ocorre em cena em diálogo com o contexto vivenciado pelo público no presente. Para a autora, Brecht considera que o estranhamento de um processo iniciava-se com a retirada daquilo que é evidente, conhecido do mesmo, provocando assim o espanto e a curiosidade. Entendemos então, que para o encenador alemão não era suficiente apenas a introdução de um elemento estrangeiro ao contexto encenado, mas o fundamental era que a tensão gerada por este encontro de dualidades provocasse o distanciamento necessário que para a reflexão crítica sobre questões sociais, políticas e econômicas vivenciadas no contexto presente da recepção acontecesse. Este processo esta vinculado diretamente com o conceito de historicização no teatro épico: a representação de contextos e pessoas inseridas no espaço e tempo presentes da recepção do espetáculo.

    BRECHT (1978), em seu “Pequeno Organon para o Teatro”  , no parágrafo 42, aponta indiretamente, a dialética presente no procedimento afirmando que “numa reprodução em que se manifeste o efeito de distanciamento, o objeto é susceptível de ser reconhecido, parecendo, simultaneamente, alheio. O teatro antigo e o teatro medieval distanciavam suas personagens por meio de máscaras representando homens e animais; o teatro asiático ainda hoje utiliza efeitos de distanciamento de natureza musical e pantomímica”. Neste sentido, podemos considerar a existência de uma potencial dimensão dialógica no procedimento, na medida em que o estranhamento provocado pela presença de algum elemento estrangeiro ao contexto gera uma tensão entre polaridades “estranhas”, abrindo espaço para a reflexão sobre as probabilidades e improbabilidades desse encontro.

    Segundo ROSENFELD (2008), Brecht utilizava recursos variados para provocar o estranhamento em suas encenações:

·         Recursos literários – utilizando-se da paródia e da ironia propõe-se um “jogo consciente com a inadequação entre a forma e conteúdo”. Este recurso abre espaço também para o grotesco; possibilidade esta aproveitada por Brecht para “desfamiliarizar” os contextos, compreendo-os e refletindo melhor sobre eles.

·         Recursos cênicos – através do uso, em cena, de títulos, cartazes e projeções a ação é comentada de forma épica, ou seja, de forma distanciada; outro recurso é o uso de máscaras parciais que mostram algumas distorções apenas, não determinando expressões “petrificadas” como riso ou ira; o cenário não-ilusionista é outro recurso desta categoria, não apoiando o sentido literal da ação, mas comentando-a.

·         Recursos cênico-musicais – o uso de coros e cantores contribui para o deslocamento da dimensão prosaica da cena, deslocando a percepção para a reflexão sobre a “estranheza” causada. Neste caso, a música comenta o texto, posiciona-se em relação a ele, não intensificando a ação.

·         Recursos de interpretação – o ator deve narrar seu papel, colocando-se no lugar de um ator-narrador que transita entre “sujeito” e “objeto”, narrador e narrado. KOUDELA (2010) aponta três indicações de Brecht em relação a esta categoria de recursos: o ator pronunciar seu texto na terceira pessoa, transpor as ações para o passado e verbalizar rubricas e comentários.

    Evidente que estes recursos vão ao encontro das proposições de Brecht, contribuindo para o diálogo sobre questões sociais pertinentes ao seu contexto pós Segunda Guerra Mundial. No entanto, não podemos desconsiderar também a dimensão formal do diálogo provocado pelo estranhamento, que através da tensão gerada entre composições formais díspares, acabam por criar verdadeiras metáforas, revelando também um potencial poético do procedimento. É claro que para o teatro épico de Brecht, o estranhamento esta vinculado à necessidade do diálogo e da reflexão sobre as questões sociais de seu tempo. Há um evidente objetivo político a ser atingido através das encenações. Porém, não podemos ignorar esta dualidade formal provocada pelo estranhamento, que estabelece conexões e tensões de ordem formal, provocando sensorialmente a recepção, e quando potencializada, certamente contribui para uma percepção mais subjetiva da encenação, caracterizando assim o que poderíamos chamar de um estranhamento poético. Sérgio Pupo (2010)  considera que “a possibilidade de uma fruição, que não está atrelada, necessariamente, ao desenvolvimento cartesiano e aristotélico das ações da obra de arte, faz com que o procedimento cênico do estranhamento poético não tenha na fábula clássica uma condição de existência”. Isto nos coloca diante de uma dimensão do estranhamento que prescinde de uma experiência racional e que potencializa uma experiência sensorial sobre a cena, o que nos aproxima bastante dos princípios do teatro pós-dramático, onde, segundo LEHMANN (2007), há um predomínio dos aspectos sensoriais sobre os racionais, favorecendo a proposição de encenações cuja potência reside justamente nos estados suscitados e não na comunicação de uma fábula compreendida racionalmente. Esta perspectiva poética do estranhamento é importante de ser considerada, principalmente no contexto do teatro contemporâneo, onde se inscrevem os modelos de encenação adotados por nós nesta pesquisa, onde as metáforas sugeridas através das imagens propostas suscitam, além do distanciamento reflexivo, também uma série de sensações e estados subjetivos que, num primeiro momento, não nos conduz a uma compreensão racional da cena, mas sim a diferentes estados sensoriais e emocionais sobre os quais a razão não consegue interferir. Assim, neste hipertexto didático, utilizaremos o termo estranhamento na perspectiva brechtiana, e quando necessário, faremos referência à intensidade de sua dimensão poética nos modelos de encenação considerados em nossa abordagem.

    Consideremos então, em “O Paraíso Perdido” (1992) a cena onde um grupo de crianças vendadas brinca de cabra-cega e após um tempo param de brincar, retiram suas vendas e saem, ficando apenas uma delas, a “perdedora”, que num gesto estranhado, pega um revólver e aponta para a própria cabeça ameaçando cometer um suicídio .

Somos tomados, inicialmente, pelo espanto provocado através do confronto da inocência e da esperança, representadas pela brincadeira e pela infância, e toda a violência acentuada pela arma sendo utilizada para tirar a própria vida, como num ato de punição por ter perdido a “brincadeira”. Identificamos aqui um forte teor poético do efeito de estranhamento, no sentido que o mesmo possibilita várias percepções e leituras, denotando uma dimensão subjetiva evidente. Na “Cena das Gêmeas” observamos duas mulheres atrás de grades, do lado oposto ao confessionário, entoando uma canção de ninar distorcida e batendo sobre seus próprios seios e genitais.

Aqui a música é utilizada com um “recurso cênico-musical” de estranhamento, deslocando a cena de sua dimensão prosaica, deslocando nossa percepção para a reflexão do autoflagelo impingido pelas mulheres em partes do corpo com forte apelo crítico ao sentido de maternidade.

    A utilização dos bancos da nave central da igreja também exemplifica o procedimento de estranhamento na medida em que são destituídos de sua função de origem e são utilizados como praticáveis, plataformas de elevação e transporte de personagens e até mesmo como obstáculos a serem transpostos na busca pelo paraíso perdido por cada um dos personagens e do público presente.

    Em “O Livro de Jó” (1995), podemos identificar o uso de “recursos de interpretação” para se atingir o efeito de estranhamento na cena 1, onde vemos Jó e sua esposa entrarem, sendo transportados sobre carrinhos de refeição do hospital, descaracterizando sua utilização primeira e criando, possivelmente, a metáfora de que os personagens serão “preparados” e “servidos “ pelos desígnios divinos.

De novo, podemos atribuir ao procedimento certo nível de subjetividade, destacando na cena o emprego de um estranhamento poético. Na mesma cena, as falas da Matriarca e de Jósão emitidas em terceira pessoa e as ações são narradas no tempo passado, colocando os atores no papel de atores-narradores, provocando o distanciamento necessário sobre as ações de Jó e sua esposa.

    Já em “Apocalipse 1, 11” (2000), destacamos no Prólogo, a cena de uma garota sentada na sacada do presídio, regando um vaso de planta florida. Durante a ação delicada da criança, regando as flores, uma voz off faz referência ao texto bíblico que narra a criação do Jardim do Éden como moradia para sua mais importante criação: o homem.

Quase no final da narração, a menina acende um fósforo e, meiga, joga no vaso cujas flores entram em chamas. Aqui também percebemos o efeito de um estranhamento poético na medida em que a cena estabelece uma forte metáfora através da sobreposição de vários elementos: a criança, com toda a sua carga de representação da inocência e doçura; a narração do texto bíblico que indica o princípio, a criação, a origem do homem; e o presídio, último lugar que um homem de bem espera estar. Um jogo de dualidades formais e temáticas, onde o otimismo e a revolta estão em constante embate, como aponta Macksen Luizem sua crítica sobre o espetáculo ao Jornal do Brasil de 17 de janeiro de 2000: “O otimismo desse final contrasta com a revolta que o texto espalha pelas diversas cenas, até mesmo na bucólica presença de uma menina que placidamente rega um vaso de flores, para logo em seguida atear fogo nas plantas, dando o tom do espetáculo logo no princípio”. Elementos díspares em suas naturezas que, ao se encontrarem, geram uma tensão que nos desloca de nossa zona confortável de compreensão racional e nos “espanta”, abrindo as janelas para diferentes estados e sensações. Ainda durante o prólogo, vemos o quarto de João materializado em uma das celas do presídio. Um lugar desconfortável, desolador, caótico e miserável.

Ali, em baixo da cama, João encontrará o Senhor Morto, um Jesus apático, absorto, que sangra pelo nariz e que não responde as inquietações e angústia de João em sua busca pela Nova Jerusalém. Possível metáfora sobre a incapacidade da religião em dar as respostas necessárias diante da condição miserável da humanidade. No primeiro ato, em plena Boite New Jerusalém temos a intervenção de dois Palhacinhos e um Coelho de pelúcia gigante e desengonçado. Personagens tão improváveis ao contexto cênico que, ao estranharmos, encontramos referências aos símbolos da alienação contemporânea associada ao consumismo exacerbado e à falta de expectativa e credibilidade dos líderes políticos ou religiosos.

Elementos intrigantes sobrepostos no jogo cênico fazendo referência a um estado de alucinação conforme a crítica de Mariangela Alves de Lima no jornal O Estado de São Paulo de 21 de janeiro de 2000: “Há muitas coisas intrigantes e belas nessa premeditada confusão de final de tudo. Os palhaços eximindo-se de participar, o melancólico e gigantesco coelho e a inocência personificada por uma mulher de branco sugerem o estado alucinatório que propicia as revelações”. Fica evidente nesta cena, entre outras, o uso da paródia enquanto recurso de estranhamento. Em relação a isto, Mônica Guerrerofaz sua crítica no periódico Blitz -Lisboa (Portugal), de 3 de outubro de 2000: “Quando os palhaços e o coelhinho entram em cena a vender jeans Lee, já nós estamos desconcertados: isto não existe. Não pode existir uma discoteca "New Jerusalém" apresentada por pinturas fluorescentes de Jesus Cristo e Nossa Senhora; onde a decência e a vergonha e a pudicícia e o respeito pelos bons costumes não passam de piadas provocatórias para um universo de seres inundados em perversão, em exibicionismo, em sexo explícito, em violência; cuja entrada é franqueada por uma senhora parcamente vestida no centro de cujas pernas afastadas se lê "Está aberta!"; onde todas as referências da cultura cristã são desmontadas, parodiadas, subvertidas em destroços, chamas, penas, cascas de ovo e uma ironia desarmante”.

    Em “BR-3” (2006), podemos apontar, dentre outros tantos, o recurso cênico de estranhamento no uso das máscaras que criam uma espécie de realidade fantástica e fantasmagórica, revelando-se também enquanto recurso da linguagem teatral, alertando-nos para o fato de que o que vemos é uma encenação e não uma realidade cênica com a qual devemos nos identificar.

Os homens com “cabeça de saco de cimento” trabalhando na cidade em construção (Brasília), causando desconforto e estranheza, distanciando-nos da identificação com aqueles personagens, nos fazendo refletir sobre sua condição de operário “sem identidade” própria, explorado enquanto trabalhador e ser humano em condições precárias e de trabalho sacrificante.

Por fim, citamos o uso do “pedalinho” na cena final do espetáculo, onde vemos um alto representante da política nacional e sua esposa passeando de pedalinho em forma de cisne branco e garboso, sobre as águas poluídas do Rio Tietê. Uma metáfora poética e com um forte teor crítico no que se refere à distancia em que se encontram nossos governantes da realidade do povo brasileiro.