Site Specific no Teatro da Vertigem

Por Cleber Lima

 

Este documento trata-se de  um verbete hipertextual sobre o procedimento site specific identificado na poética do Teatro da Vertigem e fundamentado por nós, principalmente a partir da abordagem de Richard Schechner, Antônio Araújo e Stela Fischer. Esse hipertexto tem seu caráter processual valorizado na medida em que não o colocamos como texto pronto, mas sim em construção, inclusive com o auxílio dos integrantes do experimento no qual será utilizado. Propomos referências, através de hiperlinks, a textos teóricos, trechos de roteiro das peças do Teatro da Vertigem, trechos de vídeos e imagens que contribuam para o clareamento do procedimento em foco.

A partir da década de 60, tanto na Europa quanto nos EUA, artistas de diferentes linguagens passam a buscar estratégias de reação às condições de circulação, exposição e acesso às obras de arte difundidas em galerias e museus. É neste contexto, envolvendo principalmente as artes visuais, que têm início novos movimentos artísticos como Art Land, as Instalações e as Performances. Todas estas vertentes artísticas apresentavam, dentre outros, um elemento comum: a transgressão das barreiras convencionais entre espaço-obra-recepção, e evoluíram para um tipo de manifestação artística que propunha a plena intervenção no espaço: o site specific. Neste, a obra de arte se concretiza justamente através das relações de identificação, paralelismo ou de tensão estabelecidas entre artista, sua criação, o espaço e a recepção (o público). As propostas de criação engendradas por meio do site specific se concretizam, obviamente, através da dimensão artística, porém, outros aspectos entram em jogo durante o processo de apropriação e intervenção no espaço específico: elementos arquiteturais (linhas, formas, cores, texturas, luminosidade etc.), elementos topográficos (dimensões, localização, orientação espacial, variações de relevo etc.), a história do espaço, suas características institucionais, sua memória bem como a dinâmica do fluxo ou permanência de pessoas naquele espaço. As ideias de criação artística, bem como temas ou experiências são inseridos no contexto espacial específico buscando estabelecer potenciais relações, sejam elas de identificação ou oposição, com os elementos espaciais descritos anteriormente. O site specific se caracteriza justamente através do processo de (re)significação de todos os elementos colocados em jogo, ou seja, ideias, temas, experiências e elementos constitutivos do espaço. Podemos identificar neste processo um movimento dialético na medida em que a obra de arte é (re)significada pelo espaço e este pela obra.

No teatro, o site specific se estabelece enquanto procedimento de criação cênica na medida em que se coloca como um meio de materialização de ideias e experiências cênicas. O site specific propõe a apropriação e intervenção artística em espaços públicos cuja origem e identidade institucional não estão vinculadas ao teatro, ou seja, espaços não convencionais ou “estrangeiros” ao teatro mais tradicional, familiar à nossa cultura. Segundo SCHECHNER (1968), trata-se de um teatro onde novas relações são possíveis quando abrimos mão dos acentos fixos e subvertemos o paradigma palco-plateia. Segundo o estudioso da performance, esta nova abordagem do espaço específico no teatro favorece, naturalmente, o contato corporal entre artistas e a audiência, possibilitando diferentes intensidades interpretativas e a percepção de novas experiências compartilhadas.

O processo de criação de uma encenação em um espaço específico tem como eixo norteador a busca por significados ou sentidos, através da justaposição, sobreposição ou fricção entre a cena, o espaço e a recepção. Neste processo supõe-se que todos são “tocados” e transformados, artistas, espaço e público, configurando-se assim, como uma intervenção artística e social. Elemento importante dessa dinâmica dialógica de transformação são as lembranças, as informações, o conhecimento que artistas e recepção possuem sobre o lugar específico. Trata-se, segundo FERNANDES (2010) de uma “memória coletiva” que agrega à experiência de estar em determinado lugar, certa nostalgia, sentidos sociais ou sagrados, que associados à cena, tornam-na “um núcleo emocional e imaginário da comunidade”. Referindo-se ao trabalho desenvolvido pelo Teatro da Vertigem, Fernandes aponta que “a igreja tradicional, quase ao lado da Catedral da Sé, o hospital desativado na vizinhança da Avenida Paulista, o presídio, também desativado, num bairro afastado, fora do circuito teatral previsível, são espaços reais, concretos, com memória e história, que preservam os vestígios do uso público e, por isso mesmo, colocam o espectador numa zona fronteiriça entre a cidade e o teatro”. Ainda no que se refere à memória do espaço específico, ARAÚJO (2011) reforça que “O espaço também carrega uma história – conhecida ou não, mas que se encontra inscrita em suas paredes – e uma carga emocional específica, que dialogarão com a subjetividade de cada indivíduo da plateia. Além disso, a contingência do deslocamento, seja para poder ver uma cena, seja para adquirir um ângulo melhor de visão, ou simplesmente modifica-lo, rompe com a passividade física do “estar sentado”, estimulando um maior engajamento corporal na recepção. Tudo isso somado promove uma experiência imersiva para o espectador, acentuando o caráter vivencial e não apenas contemplativo”. Percebe-se que, para o encenador do Teatro da Vertigem é clara essa dimensão da memória coletiva e do espaço, e o potencial criativo que reside na estimulação e ativação dessa memória, propiciando uma experiência, aos artistas e público, de imersão através das diversas proposições da encenação, (re)ativando o próprio espaço. SCHECHNER (1987) acredita na existência de “uma relação viva entre os espaços do corpo e os espaços através dos quais o corpo se move”. Estes espaços estão vivos na medida em que estão impregnados por uma memória específica, particular à sua trajetória histórica e cultural. Neste sentido, FERNANDES (2010) afirma que “refazendo o percurso do Teatro da Vertigem por São Paulo, é possível perceber claramente um projeto de sociometria, que passa pela ocupação do lugar público. Na economia simbólica de uma cidade violenta como a nossa, descontínua, sem coerência estrutural nem marcos efetivos de localização, a trajetória do grupo é quase uma inversão da geografia urbana na medida em que invade espaços coletivos para reativá-los por meio do trabalho de teatro”.

No que se refere às escolhas dos espaços específicos nas montagens do Teatro da Vertigem, podemos identificar a presença de uma dimensão semântica que se destaca: são ambientes urbanos dotados de conotações específicas que são potencializadas através do jogo cênico de forma a estabelecer, quase sempre, uma fricção entre os temas desenvolvidos pelas peças e a experiência sensorial com o espaço. FISCHER (2010), referindo-se ao espaço escolhido para a encenação de “O Paraíso Perdido” (1992), afirma que “a exploração espacial e a movimentação dos atores ampliaram os conteúdos semânticos próprios do local de apresentação – igreja – e suscitaram imagens oníricas que contemplavam a temática posta em cena”. Neste sentido, XAVIER (2012)reforça a presença de características semânticas específicas de cada espaço no Teatro da Vertigem e o consequente potencial experiencial resultado da imersão proporcionada pela encenação: “Há a escolha de espaços institucionais dotados de conotações específicas (igreja, hospital, prisão, edifício num local emblemático da verticalização da cidade). E há a escolha de travessias que exploram a relação entre cena aberta e canais de circulação que, por sua estrutura feita de camadas superpostas da história, ensejam uma relação especial entre o núcleo temático da peça e a experiência sensorial, corporal e de fricção com o ambiente implicadas na travessia”.

O diferencial da abordagem do site specific no Teatro Vertigem, segundo Antônio Araújo 2, é que a escolha do tema a ser discutido, das questões que o grupo elege para a investigação, vem antes da escolha do lugar, do espaço a ser utilizado na encenação. Na prática, todo um trabalho de pesquisa, vivências e até improvisações cênicas e dramatúrgicas antecede a definição e a “entrada” no espaço específico escolhido para a encenação. É claro que, mesmo com este trabalho precedente de pesquisa e experimentação, a consolidação da encenação se dá apenas após a “entrada” e apropriação do espaço específico. Neste processo, a principal consequência que ocorre é a necessidade de reelaboração de todo o material criativo ordenado previamente. ARAÚJO (2008) afirma que “o local da apresentação, evidentemente, afetará também a dramaturgia - que deverá ser reelaborada à luz desse novo elemento - e o trabalho dos atores, o qual sofrerá um redimensionamento radical em razão desta ocupação. Ou seja, o processo de descoberta, exploração e diálogo com o espaço será compartilhado por todos”. É um momento delicado e que exige o envolvimento e a participação de todos os integrantes do grupo. O encenador do Vertigem aponta as principais interferências provocadas por esta abordagem do espaço específico no processo de criação:

·         “relação espaço/texto”, onde o espaço interfere na dramaturgia, que deve ser reescrita e adaptada para as necessidades e potencialidades do espaço;

·         “relação espaço/ator”, onde o espaço influencia a interpretação através de estímulos atmosféricos e objetuais específicos de seu contexto espacial;

·         “relação espaço/público”, onde o espaço interfere na recepção, na leitura do espetáculo, por meio das memórias pessoais e coletivas que são evocadas ou através de elementos culturais impregnados no espaço que induzem a projeção de imagens relacionadas ao lugar.

A prática com o site specific nos processos de criação do Teatro da Vertigem contribuiu para que ARAÚJO (2008) sistematizasse uma proposta metodológica para a apropriação e intervenção espacial em suas encenações:

·         “livre exploração do local”, através da circulação livre pelo espaço, guiada simplesmente pela curiosidade;

·         “jogos”, de natureza lúdica, comuns ao universo dos jogos infantis clássicos ou adaptados;

·         “viewpoints” espaciais, a partir da adaptação da técnica desenvolvida por Anne Bogart, realizar exercícios e jogos de improvisação de movimento relacionados à arquitetura e à topografia do espaço;

·         “encontrando e construindo a casa da personagem” através de jogo lúdico onde cada ator deve encontrar/construir um local dentro espaço para ser a “moradia” da personagem;

·         “jogos e improvisações situacionais”, buscando iniciar um diálogo entre o espaço e as circunstâncias concretas da peça;

·         “experimentações da trajetória do espetáculo e do percurso do público dentro do espaço”, através da testagem de diferentes possibilidades de ocupação, estruturação e deslocamentos, realizando diversos ensaios “corridos” do espetáculo;

·         “ensaios de marcação”: após a definição da trajetória espacial, dedica-se à investigação das possibilidades de cada cena em seu local definido;

·         “ensaios de aprofundamento e interpretação”, quando é trabalhada a apropriação espacial, o domínio técnico nas relações com o espaço e a exploração de outras camadas de diálogo do ator com o espaço;

·         “corridos e ensaios gerais”, quando se trabalha a logística dos deslocamentos dentro do espaço;

·         “ensaios abertos”: a presença do público é importante para a equalização de elementos referentes à recepção como quantidade de pessoas, seu deslocamento real pelo espaço, questões de visibilidade e elementos de risco.

 

Após esta reflexão de caráter conceitual sobre o procedimento site specific, nos deteremos agora na análise deste procedimento nas montagens do Teatro da Vertigem. Em “O Paraíso Perdido” (1992), o grupo investiga a perda do paraíso e a busca pelo “sagrado” de cada um de nós. A escolha do espaço específico para encenação, à primeira vista, pode parecer ilustrativa, com um teor de identificação ou até mesmo redundante em relação à temática da peça. Porém, ao analisarmos mais a fundo roteiro e encenação verificamos que se trata, na verdade, de duas extremidades de uma possível trajetória humana, onde, o texto trata de estado presente de “perda do paraíso”, de escuridão, e o espaço específico onde ocorre a encenação remete ao encontro com o sagrado. ARAÚJO (2011)afirma que “a peça, em sua dimensão ficcional, trataria do exílio e do desterro, enquanto o lugar da representação apontaria para o retorno ou o reencontro com o topos sagrado. A ideia, portanto, era criar uma tensão com o conteúdo abordado, e não uma redundância ou ilustração. (...) A ideia chave era criar uma zona híbrida, de intersecção, ente o “real” ou a “realidade” do espaço e o “ficcional” ou o “teatral”, advindo do roteiro e do espetáculo. Esse terreno intermediário e movediço poderia ser capaz de desestabilizar o espectador e interferir concretamente na sua percepção, afetando, assim, a leitura e recepção da obra”. Podemos identificar, como exemplo desta relação de tensão entre o tema investigado e o espaço, a cena onde o Anjo Caído, num ataque de rebeldia, corre para o altar e os bancos se fecham atrás dele, “aprisionando-o” no altar e impedindo o público de chegar até lá. Na sequência, os bancos são movimentados, obrigando o público a abrir um grande espaço vazio no meio da nave central da igreja. Além da tensão provocada entre tema e espaço, podemos perceber também o quanto que o público é imerso na experiência, sendo estimulado o tempo todo a mover-se e a ocupar lugares físicos e “posições” temáticas, mesmo que provisórias, dentro da encenação.

Em outra cena do espetáculo, vemos uma mulher , com as mãos sujas de sangue, num nicho onde se encontra um crucifixo, uma imagem sagrada, local de adoração e devoção. A mulher se coloca neste espaço como se fosse a imagem de uma santa, e num misto de dor e vida, questiona sua condição de mulher e mãe. 

Já no final da encenação, uma mulher segurando um balão, vem de fora e entra na igreja falando sobre sua “perturbadora alegria” em relação ao movimento de queda, enquanto o Anjo Caído desce por uma corda do alto do Coro da igreja, lugar emblemático carregado pela simbologia de estados de elevação espiritual.

Percebe-se, através da análise destes trechos, a importância do espaço específico (Igreja Santa Ifigência - SP) para a instauração de uma relação de tensão, tirando o público de sua zona de conforto e equilíbrio através da imersão em uma zona de simultaneidade entre o carnal e o sagrado.

            Em “O Livro de Jó” (1995), a relação tema-espaço deixa transparecer certa identificação, na medida em que um hospital, lugar de dor, sofrimento e até de espera pela morte, parece-nos próximo ao contexto de Jó, protagonista da peça, que agoniza, sob os desígnios divinos, toda a angústia e sofrimento causado por uma doença incurável e misteriosa. Para ARAÚJO (2008), “o hospital como lugar purgatório, como espaço privilegiado do páthos sofrimento, da contaminação e da iminência da morte, traduzia a leitura de um Jó com AIDS proposto pela encenação. Ele materializava, também, o desejo de configurar uma “poética da dor”. Além disso, ao colocar o público ali dentro, exposto à concretude arquitetônica e dos objetos, e à memória e ao imaginário hospitalar, a encenação pretendia intensificar o fator-experiência. Ao invés da observação passiva, segura e distanciada, os espectadores deveriam se confrontar com eles mesmos enquanto possíveis ”Jós”, e correr o risco de se contaminarem eles também”. Certamente, mais que a identificação pura e simples com o tema, o espaço específico (Hospital Humberto Primo – SP), intensifica e potencializa o núcleo temático da peça, ao mesmo tempo em que é (re)ativado pela sobreposição da encenação e pela imersão do público no fluxo cênico proposto pelo grupo.

            Esta potencialização se deu, principalmente, devido ao cuidado do grupo em incorporar todos os elementos espaciais do hospital (arquitetura, topografia e objetos) à encenação. FISCHER (2010) aponta que um “dado impactante é a utilização dos recursos materiais do próprio espaço para servir à cena, como equipamentos cirúrgicos, macas, sondas, máscaras de oxigênio, chapas de raios-X e tomografias. Toda a indumentária, concebida por Fábio Namatame, foi realizada a partir de pesquisas de materiais utilizados em ambientes hospitalares, como instrumentos cirúrgicos, aventais e vestimenta de internos, gazes. A premiada iluminação de Guilherme Bonfanti também partiu da pesquisa dos objetos próprios do hospital que foram adaptados para a utilização cênica. Mesas de luz próprias para visualizar radiografias e luminária cirúrgica substituem os usuais refletores. Todas essas soluções cênicas foram propostas pela equipe durante o processo criativo e no momento de ocupação do espaço cênico”.

            A relação espaço-cena proposta na encenação certamente extrapola a simples ilustração e qualquer indício de finalidade contemplativa. A apropriação e intervenção no hospital também leva o público a um “mergulho” numa realidade de dor, sofrimento, purgatória que ninguém escolhe estar, mas que certamente faze parte do conjunto de experiências humanas a que certamente estamos suscetíveis. Sábato Magaldi, em sua crítica sobre o espetáculo ao jornal Estado de São Paulo de 24 de agosto de 1996, afirma que “o espaço do hospital não é mero cenário passivo. Antônio Araújo explorou-o nos mais variados recantos. Desde as primeiras imagens, em que três grandes paredes de vidro, muito bem iluminadas por Guilherme Bonfanti, abrem a visão do interior, até a utilização do instrumental próprio - macas, mesa cirúrgica, recipientes de soro etc.-, tudo é apropriado para que o sofrimento de Jó funcione também como clara metáfora da grande moléstia contemporânea, e um discreto avental do Emílio Ribas não permite equívoco”.

Em “Jó”, o espaço específico se coloca como uma grande metáfora sobre o “estado de saúde” de todos nós, da humanidade, acometida por uma série de moléstias físicas, psicológicas e sociais.

 

Já em “Apocalipse 1, 11” (2000), o espaço específico (antigo presídio do Hipódromo – SP) é escolha contundente diante do contexto de comemoração dos 500 anos do Brasil e agitação mundial pela virada de milênio. No primeiro caso, contundente na medida em que a realidade social do povo brasileiro, em seu limite de miséria, violência e descaso, não tem nada para comemorar; e em relação ao segundo, a forte especulação sobre o fim dos tempos e um novo recomeço tem sua simbologia potencializada se refletida no contexto de um presídio.

Ao inserir o João da história bíblica sobre o juízo final, dentro do presídio, depósito de excluídos, da escória da sociedade, de sentenciados ao isolamento social, o grupo remete o espaço à representação alegórica do apocalipse, do fim dos tempos, onde a “besta fera” se manifesta com todo o seu ódio e desprezo pela humanidade e onde também todos serão julgados, inevitavelmente, passando pelo juízo final. Kil Abreu, em sua crítica sobre um dos ensaios abertos do espetáculo, ao periódico Palavra de 9 de dezembro de 1999, afirma que, “em O Paraíso Perdido, a igreja abrigava a discussão sobre o sagrado; em O Livro de Jó, o hospital remetia à dor, ao sofrimento. Em Apocalipse, o presídio justifica-se como o lugar da punição, de expiação da culpa. Interessa ao diretor o sentido que o espaço estabelece ao dialogar com a cena: "O registro de interpretação dos atores e a leitura do espectador são afetados por essa memória do lugar, que gera uma carga simbólica muito forte", diz ele. De fato, ao acompanhar o andamento do espetáculo pelo labirinto de ferro da prisão, o espectador fica suspenso em uma zona intermediária entre o ficcional e o real. Cria-se uma tensão permanente diante do enfrentamento contínuo com um espaço-tabu”.

 

Segundo ARAÚJO (2008), levando em conta a experiência adquirida nas montagens anteriores, o grupo pôde elaborar e experimentar uma proposta mais criteriosa de ocupação do espaço para “Apocalipse 1, 11”, planejando etapas de reconhecimento, apropriação e intervenção do espaço que considerasse aspectos técnicos, artísticos e até mesmo a energia do local. Este processo mais elaborado certamente contribuiu para o avanço na qualidade da apropriação do espaço bem como para a potencialização do aspecto semântico do lugar específico (presídio) associado ao contexto da peça. Neste sentido, Macksen Luiz, em sua crítica sobre o espetáculo ao Jornal do Brasil de 17 de janeiro de 2000, chama a atenção para “as revelações contidas no "Apocalipse", comunicadas a um João que pouco tem a ver com o evangelista bíblico, as paredes escuras e carregadas de memórias de violência, dor e desespero de um presídio são mais do que uma cenografia que procura tirar efeitos provocadores de lembranças, mas uma ambientação que aprisiona o espectador numa representação apocalíptica”. Todos os elementos visuais e contextuais, associados à energia do presídio, contribuem para potencializar as revelações apocalípticas e a experiência de João em busca de sua Nova Jerusalém seja em seu quarto  “instaurado” numa cela fria, suja e decadente do presídio, seja no uso do vaso sanitário real da cela para “abrir os olhos” de João às revelações que estão por vir.

Na montagem de BR-3 (2006), o espaço específico escolhido parece-nos o mais ousado de todos já apropriados pelo grupo: o Rio Tietê (SP). Símbolo emblemático do avanço e crescimento urbano da capital mais rica do país, o rio também se coloca enquanto metáfora capitalista do descaso com o meio ambiente e da supervalorização do consumo em detrimento do sustentável, verdadeiro esgoto da podridão urbana.

A peça, focada na trajetória de Jovelina e seu filho Jonas, procura traçar uma espécie de cartografia brasileira provisória que passa por três “Brasis”, segundo ARAÚJO (2008): Brasilândia (bairro periférico da cidade de São Paulo), Brasília (capital federal do país) e Brasiléia (cidade do Estado do Acre, fronteiriça com a Bolívia).

A proposta de apropriação do espaço específico em BR-3 parece-nos concretizar-se pela sobreposição da cartografia investigada na viagem realizada pelo grupo pelos três “Brasis”, na arquitetura e topografia do Rio Tietê. A metáfora aqui parece residir na ideia de viagem, trajeto rumo a uma identidade nacional transitória e instável, muito bem representada pelo rio e sua correnteza. Segundo Sérgio Siviero, ator do Vertigem, o rio aparece justamente como a ideia de um “percurso invisível”, que não queremos enxergar na medida em que flui em suas águas os restos e dejetos de nossas ações pró-progresso, como um intestino urbano apodrecido. A sobreposição desta cartografia no espaço específico se deu de forma criteriosa, como explica ARAÚJO (2008): “a encenação, por sua vez, logrou definir um conceito de utilização do espaço. As cenas do texto situadas em Brasília seriam encenadas ao redor dos viadutos, onde o aspecto de monumentalidade ficava evidenciado. Utilizamos, para tanto, o Cebolão, a ponte da CPTM e o viaduto da Anhanguera. Já as cenas em Brasilândia ocorreriam embaixo de pontes, no sentido de acentuar o elemento de precariedade. Em função disso, as encenamos sob a Ponte dos Remédios e sob a ponte Atílio Fontana. Por fim, aquelas que se situavam em Brasiléia seriam apresentadas ao ar livre, nas margens e leito do rio, reforçando o aspecto de "natureza" - salvo a cena do Seringal Egito; que demandava um local fechado”.

Neste sentido, o espaço contribui para a potencialização dos aspectos sociais, geográficos e transitórios desenvolvidos pela narrativa do espetáculo.