Cenocentrismo

Visão "cenocentrista"

 

Seria preciso, para acabar com essas visões filológicas, ter a radicalidade de um esteta corno Thies Lehmann, para quem "a encenação é urna prática artística estritamente imprevisível pela perspectiva do texto?" Tal posição radical nega qualquer ligação de causa e efeito entre o texto e a cena, atribuindo à encenação o poder de decidir soberanamente suas escolhas estéticas. E, de fato, é assim que procedem numerosos encenadores, de Wilson a Grüber, ou de Mesguich a Heiner Müller. Eles preparam texto, música, cenografia, atuação de maneira autônoma e efetuam a "rnixagem" dessas diferentes pistas apenas no final do percurso, quando se monta um filme. Nesses exemplos, o texto não se beneficia mais de um estatuto de anterioridade ou de exclusividade: é apenas um dos materiais de representação e não centraliza nem organiza os elementos não verbais. Por outro lado, para encenações de textos cuja leitura e conhecimento é por assim dizer inevitável (sejam esses textos conhecidos ou simplesmente baseados em personagens e situações dificilmente ignoráveis), a tese de Lehmann é mais dificilmente sustentável, pois o espectador não deixará de se interrogar sobre a relação entre a prática artística e o texto, seja apenas para se perguntar corno a cena pode a esse ponto ignorar o que sugere para nós o texto.

No caso de uma encenação no qual o texto é dado, apesar de tudo a ser ouvido, será proposto o seguinte compromisso (em relação à afirmação categórica de Lehmann): a encenação não é ditada unicamente pela leitura do texto; por outro lado, tal leitura sugere aos práticos a colocação experimental e progressiva de situações de enunciação, quer dizer, de uma escolha de "circunstâncias dadas" (Stanislávski), as quais propõem uma perspectiva para a compreensão do texto, ativando a leitura e gerando interpretações que o leitor sem dúvida não havia previsto e que provêm da intervenção do ator e dos artistas engajados na prática cênica.

Vamos concluir assim com um compromisso entre a posição textocentrista e cenocentrista: não há sentido em querer prender a encenação em elementos potenciais ou incompletos dos textos, mesmo se acabando sempre por encontrar um índice textual no qual a encenação pode "legitimamente" se agarrar; não há "pré-encenação" já inscrita no texto dramático, mesmo se o texto só possa ser lido imaginando situações dramáticas nas quais se desenrola a ação. O que isso resulta para a análise do espetáculo que contém um texto dramático? Para que ela deve estar atenta?

 

  • Ela deve evitar a qualquer preço comparar a encenação ao texto do qual ela parece derivar. O texto não é ponto de referência indiscutível ao qual a análise deve remeter para analisar o espetáculo.
  • Ela deve separar minuciosamente o que ela sabe do texto escrito graças a um conhecimento prévio e "no papel", e o que ela percebe do texto "impostado em cena" e logo enunciado em uma situação de enunciação muito precisa que ela deverá começar por descrever.
  • Trata-se pois de pensar separadamente o estudo dos textos escritos e os das práticas cênicas comportando textos.

 

A tendência da encenação muitas vezes é a de negar qualquer relação entre textos e práticas cênicas. Alguns encenadores procuram textos que não podem teoricamente ser representados em um palco, ou que resistem à sua encenação. Heiner Müller chegava a fazer disso o critério de um teatro produtivo: "é só quando um texto não pode ser feito com o teatro existente que ele se torna produtivo para o teatro ou interessante'".

Dessa forma, a encenação hoje não é mais sempre a passagem do texto à cena; às vezes ela é uma instalação, ou seja, uma apresentação de diversas práticas cênicas (luz, artes plásticas, improvisações), sem que seja possível estabelecer hierarquia entre elas, e sem que o texto faça o papel de polo de atração para o resto da representação.

Nesse sentido, é a atuação do texto que fornece as primeiras indicações sobre o sentido do texto e sobretudo o estatuto que devemos lhe atribuir no interior do espetáculo analisado.

 

PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. Trad. Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo: Perspectiva: 2011. Pág. 191-193