Apocalipse 1, 11 (Mônica Guerreiro)

Apocalipse 1, 11

Mônica Guerreiro

 

Quando os palhaços e o coelhinho entram em cena a vender jeans Lee, já nós estamos desconcertados: isto não existe. Não pode existir uma discoteca "New Jerusalém" apresentada por pinturas fluorescentes de Jesus Cristo e Nossa Senhora; onde a decência e a vergonha e a pudicícia e o respeito pelos bons costumes não passam de piadas provocatórias para um universo de seres inundados em perversão, em exibicionismo, em sexo explícito, em violência; cuja entrada é franqueada por uma senhora parcamente vestida no centro de cujas pernas afastadas se lê "Está aberta!"; onde todas as referências da cultura cristã são desmontadas, parodiadas, subvertidas em destroços, chamas, penas, cascas de ovo e uma ironia desarmante. Apocalipse 1, 11 não começa aqui, nem se faz só disto: mas é, principalmente, um exercício intensamente desgastante, onde somos confrontados com uma cultura construída que se desfaz em duas horas sem cedências nem paninhos quentes. Apocalipse 1, 11 é puro, inocente e delicado, quando a criança em cima do telhado sorri à leitura de uns versículos do "Gênesis"; é sarcástico quando impele à leitura de um edital de 1400 actualizado para as deficiências e mazelas de hoje, com quarentenas à altura; e é finalmente destruidor quando nos apresenta João, um pecador arrependido, católico empenhado, que enceta a viagem de uma vida em busca de Nova Jerusalém, que, havia lido na Bíblia, é a terra prometida, o destirio final, o paraíso. Mas a busca revela-se um doloroso calvário: e as descobertas sucessivas são um desconsolo para alguém que procura repouso nos braços de um Cristo bondoso e comprometido com a humanidade, e não encontra senão pornografia e heresia (lato sensu), e uma gritante sensação de vazio moral. Espectáculo de horrores, teatro de choque, experiência-limite: Apocalipse 1,11, a maior aposta dos Encontros Acarte deste ano, uma degeneração da autoria do Teatro da Vertigem, é tudo isto. E mais que escapa às palavras: é o desconforto, o medo, a impotência, o susto, o pesadelo, a estupefacção. A puta Babilónia, a punição dos pecadores, nus, gemendo contra a parede, a Besta que clama "venham a mim", como Cristo às criancinhas, e denuncia os vícios e falsidades de uma sociedade imperiosamente justiceira. Apocalipse 1, 11 é incrivelmente directo e final (no sentido em que estabelece um novo paradigma), é a prova absoluta de que alcançámos o extremo de qualquer coisa. Provavelmente do último sentido do homem. Obrigatório.

 

(Blitz - Lisboa, 03/10/2000)