Depoimento Pessoal e Depoimento Coletivo (Antônio Araújo)

5.7 DEPOIMENTO PESSOAL E DEPOIMENTO COLETIVO

 

Antes de passarmos às demais instâncias práticas presentes nos ensaios, é fundamental discutirmos um dos eixos centrais do processo colaborativo: o depoimento pessoal. Por paradoxal que pareça, no âmbito de um projeto coletivo, tal depoimento é responsável por inegável força agregadora. A valorização da perspectiva individual pode, é claro, num primeiro momento, acirrar as diferenças. Contudo, a médio prazo, ela possibilita a construção de uma plataforma comum. Isso, evidentemente, desde que haja a existência prévia de um contexto grupal e de um projeto coletivo de base. Na verdade, será essa constante tensão entre depoimento pessoal e depoimento coletivo - tensão essa de difícil apaziguamento durante o processo - que definirá o modo colaborativo de criação. Porém, insistimos, é justamente a radicalização das subjetividades que vai propiciar, de maneira orgânica e endógena, que o discurso coletivo se forme.

Conforme já analisado em nossa dissertação de mestrado[4], o depoimento pessoal é um testemunho, uma confissão, uma opinião ou um posicionamento crítico realizado de forma cênica. É claro que posições individuais aparecem nas discussões e debates durante os ensaios. Porém, o que denominamos depoimento pessoal pressupõe um ponto de vista formalizado cenicamente, sem importar aí o grau de acabamento. Ele se configura, portanto, da seguinte maneira:

 

  • é desenvolvido a partir da relação e do confronto dos atores com os conteúdos e temas do projeto (aspecto opinativo);
  • resgata a memória pessoal, com a retomada frequente de histórias passadas e de registros subjetivos remotos (aspecto autobiográfico e confessional);
  • exercita a reflexão crítica e conceitual com respeito aos temas, por meio de uma tomada de posição (aspecto crítico).

 

Além disso, o depoimento pessoal cumpre uma dupla função no processo. É, por um lado, instrumento de investigação da pesquisa temática e, por outro, gerador de material' cênico bruto para a dramaturgia e o espetáculo. Na verdade, sob esse último aspecto, o depoimento pessoal se torna o próprio fragmento cênico passível de reelaboração. Ou seja, ele tanto é procedimento metodológico quanto resultado expressivo.

O depoimento pessoal é a base sobre a qual se constrói a criação. É em razão dele que se consolida, por exemplo, o ator-autor. Ao invés de ser apenas tradutor, intérprete ou repetidor de falas alheias, o ator vai produzir o seu próprio discurso, enunciar a sua visão de mundo, ou seja, posicionar-se. Esse posicionamento é tanto estético quanto ideológico, pertence tanto ao indivíduo-ator quanto ao cidadão-ator, enraíza-se na vivência pessoal, mas também no contexto histórico-social em que ela está inscrita, em suma, constrói uma formulação que imbrica arte e vida.

No processo colaborativo, portanto, o ator não apenas representa personagens, mas, sobretudo, efetua um depoimento artístico autoral. Sob este ângulo, ele se aproxima da ideia de performer, que cria a partir da sua visão de mundo particular, trazendo para a cena uma presentificação - ou reelaboração - de sua própria história de vida.

Do ponto de vista estritamente interpretativo, a prática do depoimento pessoal, por seu caráter confessional, vai estimular no ator um estado de abertura e desprendimento, provocando o que poderíamos chamar de desvelamento. Nesse sentido, o depoimento pessoal se constitui em ferramenta capaz de interferir nos mecanismos de bloqueio do ator, estimulando a sinceridade e a entrega. Ele contribui também no processo de autoconhecimento do ator, imbricando prática artística e experiência de vida, consciência da obra e consciência de si.

Segundo Mário Santana, em sua análise sobre o depoimento pessoal, a sua função é

 

[...] fornecer aos atores estímulos de superação das próprias limitações, é buscar que se deixem em condições de dar vazão ao interdito e ao indizível; àquelas possibilidades de fala pessoal onde o insólito, o inusitado ou o insuportável brotam de impulsos pessoais profundos e livres de compromissos com estruturas expressivas prévias. [5]

 

Do ponto de vista grupal, o exercício desse depoimento acaba por promover a cumplicidade e o amadurecimento nas relações interpessoais, na medida em que os intérpretes vão conquistando, conjuntamente, um espaço comum de desvelamentos. À medida que um ator se abre e compartilha suas histórias, memórias pessoais, opiniões e críticas, os outros atores também se contaminam por tal atitude, e um espírito coletivo de respeito mútuo, de parceria e de cumplicidade vai se consolidando.

Contudo, é importante ressaltar que, apesar do caráter de auto-exposição inerente a essa abordagem, é o ator quem decide que material ou que memória de seu "baú pessoal" ele pretende compartilhar com o grupo. Estabelece-se um pacto, inclusive, de que ninguém deverá expor algo com que não se sinta apto a lidar ou que ainda não esteja suficientemente "trabalhado" no plano subjetivo. O limite entre desve1amento e terapia de grupo é tênue, com o agravante de que não possuímos capacitação profissional na área psicológica para coordenar - ou socorrer - tais desvios. E, sobretudo, porque o nosso objetivo é, na origem e no final, a realização de uma obra artística.

Quanto ao diretor, ele cumpre um papel importante no sentido de estimular e acirrar os pontos de vista de cada integrante em relação ao projeto e de incitar os atores a investigarem a si mesmos e a extensão dos seus limites. Ele deve evitar a censura e o menosprezo a posicionamentos mais frágeis ou confusos, a fim de não criar uma atmosfera de intimidação.

Como já dissemos, será da intensificação deste olhar individual que emergirá a visão panorâmica do conjunto. A radicalização das singularidades abre espaço para que os diferentes dialoguem, contraponham-se e, na sequência, o conjunto se afirme. O ator submisso, que não se posiciona - o que é diferente do ator neutro, já que a neutralidade pode implicar num posicionamento -, é um entrave à polifonia grupal. Pois é justamente do embate de múltiplos depoimentos pessoais que se construirá o depoimento coletivo.

 

Fonte:

ARAÚJO, Antonio. A Encenação no Coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo. 2008. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, USP, Brasil. (p.156-8)

 

 



[4] SILVA, A. C. A., A Gênese da Vertigem: o Processo de Criação de 'O Paraíso Perdido', pp. 84-86.

[5] SANTANA, M. A. A Cena e a Atuação como depoimento estético do ator criador nos espetáculos ‘A Cruzada das Crianças’ e ‘Apocalipse 1,11’.2003.197 f. Tese (Doutorado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, p. 154.