O Intrigante e Pungente Apocalipse 1, 11 (Mariangela Alves de Lima)

O Intrigante e Pungente Apocalipse 1, 11

Mariangela Alves de Lima

 

Na ordenação canônica dos textos evangélicos, coube ao "Apocalipse" o último lugar, e essa posição expressa o reconhecimento desses antigos editores de que se trata de uma obra bem diversa, na forma e no conteúdo, dos textos testemunhais e doutrinários. Nestes a divindade humanizada é amparada, literariamente, por descrições de pormenores da vida terrena, e esses detalhes contribuem para que o leitor, identificando-se, ligue à própria existência os conteúdos espirituais do cristianismo. Ao término do "Novo Testamento", entretanto, restabelece-se o vínculo com a Bíblia hebraica por meio de um livro no qual se ouve uma vez mais a altissonante divindade sem corpo.

Como nos antigos livros proféticos, a narrativa se dá fora do tempo, as figuras são inteiramente simbólicas, e, em lugar da doutrina, prevalecem os conteúdos normativos e judicativos. Retoma-se o estilo epifânico, que é, para Erich Auerbach, uma das vertentes da literatura ocidental: "As histórias das Escrituras não nos lisonjeiam com o intuito de seduzir e encantar-procuram subjugar-nos; e, se nos recusamos a essa submissão, somos rebeldes".

O espetáculo criado agora pelo Teatro da Vertigem a partir de uma leitura do ''Apocalipse'' contém em si o duplo movimento da submissão e da rebeldia. Aceita em grande parte a formalização de uma obra revelada recriando cenicamente suas hipérboles, os procedimentos formais que aterrorizam e agem sobretudo no campo da sensibilidade, induzindo-nos a desejar, se não a crer, que deve haver alguma ordem ao fim desse tumulto de violência e desespero. Preserva, para construir esse efeito, a estrutura da narrativa em que se inspirou. João é convocado para registrar as visões, há uma caracterização dos erros e das punições das cidades terrenas e, por fim, o julgamento que põe fim ao tempo.

A rebeldia se manifesta na forma historicizada das figuras em cena. Não são inteiramente abstrações da iniquidade e do sofrimento que cabem aos pecadores, mas figuras do presente cometendo e sofrendo os atos cruéis sem discernimento. É uma dramatização que omite os arquétipos de bondade e justiça que deveriam impulsionar a revelação. Fiel ao espírito deste tempo, quando a extensão das injustiças e do sofrimento torna quase impossível distinguir a origem e contemplar um fim, a versão do Teatro da Vertigem se abstém de separar o bem do mal, os justos dos pecadores.

A primeira metáfora desse nó inextrincável é o presídio, lugar onde se aloja a encenação. Concreto e real, é também símbolo da Babilônia moderna, lugar onde silenciou a harpa, não se ouve mais o canto do moinho nem a voz do marido e da mulher. É onde desejaríamos circunscrever o mal e é, portanto, o lugar escolhido para mostrar como o que está dentro se parece com o que está fora.

O desacordo com a função judicativa do texto original está também visível nas falas dos personagens. Em grande parte, desorientam e escarnecem do sentido unívoco das afirmações. As mensagens que deveriam chegar de um mundo transcendente são, nesse espetáculo, ordenações burocráticas de autoridades terrenas que não sabem mais o que falar e o que fazer. Só as manifestações blasfemas das duas alegorias, a Besta e a Babilônia, têm a credibilidade indiscutível do mau gosto e do deboche dos meios de comunicação de massa.

Há muitas coisas intrigantes e belas nessa premeditada confusão de final de tudo. Os palhaços eximindo-se de participar, o melancólico e gigantesco coelho e a inocência personificada por uma mulher de branco sugerem o estado alucinatório que propicia as revelações. Mas há também cenas pungentes pelo tratamento hiper-realista, nas quais reconhecemos fragmentos da nossa experiência cotidiana. É extraordinária, nesse sentido, a cena em que um homem negro é humilhado.

Em O Livro de Jó, realização anterior desse grupo, uma epifania final consolava o sofrido personagem bíblico. Nesse espetáculo se expressam, nas falas ásperas ou sarcásticas escritas por Fernando Bonassi, o cansaço e a desesperança. Parece mais distante a Cidade de Deus.

 

(O Estado de S. Paulo, 21/01/2000)