Apocalipse 1, 11

APOCALIPSE 1, 11

Criação - Teatro da Vertigem

Dramaturgia - Fernando Bonassi

Concepção e direção geral - Antônio Araújo

 

Excertos retirados do roteiro que exemplificam o uso do estranhamento enquanto procedimento de criação dramatúrgica:

 

(...)

Criança

(Entra a Criança. Ela tem um regador nas mãos e aproxima-se de um vaso onde está uma planta muito florida. A Criança rega a planta delicadamente.)

 

Texto Off

 

Iahweh Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida, e o homem se tornou um ser vivente ... Depois plantou um jardim em Éden, no Oriente, e aí colocou o homem que modelara.. Então Iahweh Deus fez crescer do solo, no meio do jardim, a árvore do conhecimento do bem e do mal. (A Criança termina de regar, apanha uma caixa de fósforo: Sorri, meiga, para todos os presentes.)

 

Texto Off

 

E Iahweh Deus deu ao homem este mandamento: "Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer". (A Criança risca um palito de fósforo e joga no vaso, que entra em chamas. A planta termina de queimar, apaga-se.)

 

(...)

Chegada de João

 

(João entra vestido pobremente. Carrega numa das mãos uma mala de papelão e uma Bíblia e, na outra, um guia da cidade e alguns mapas. Sua aparência é de exaustão, acaba de chegar de uma longa viagem. Ele se insinua entre os espectadores, até o seu quarto. Entra. Trata-se de um lugar escuro, desolador, miserável, caótico e desconfortável.)

 

João e a Noiva

 

(João abre a porta. Tem diante de si a Noiva. Aqui ela se apresenta numa mistura de virgem/noiva e arrumadeira de hotel. Traz nas mãos mudas de roupa de cama e seu fatídico buquê de flor de laranjeira. Ela passa a arrumar o quarto.)

 

(...)

João e o Senhor Morto

 

(João acende um cigarro. Fuma. Suspira. Em seguida, percebe algo embaixo da cama. Lá está o Senhor Morto, uma figura de túnica branca [talvez Jesus Cristo], deitado com as mãos postas sobre o peito. Do seu nariz, brota uma gota de sangue. Trêmulo, João vira o colchão, expondo a figura.

 

João

 

Você de novo ... (João tem a respiração difícil. Olha longamente, com tristeza e raiva, para o Senhor Morto. Depois ergue-se. Anda em torno. Olha pela janela. Fuma. Suspira. Volta a se sentar.) Escuta, por que é que eu corro, corro, corro ... e não chego em nenhum lugar? (Pausa.) Por que é que eu rezo, rezo, rezo ... e não sou atendido? (Pausa.) Por que é que eu amo, amo, amo ... e não sou amado? (Pausa.) Por que é que eu trabalho, trabalho, trabalho ... e não consigo ter nada? (Pausa.) Por que é que eu respiro, respiro, respiro ... e sempre me falta o ar? (Pausa. Irado.) Por quê? (Pausa.) Por quê?

 

(O Senhor Morto não reage.)

 

(...)

Primeiro Ato - Ascensão e Queda da Besta

 

Boite New Jerusalém

 

(João chega à Boite New Jerusalém, que anuncia o "Último Show da Besta". Ele e os espectadores tomam assento. João observa o ambiente; sorri, chapado. Trata-se de um lugar que remete às piores espeluncas, com umas poucas mesas. Num canto, uma TV exibe cenas de acidentes de automóveis, grandes enchentes e queimadas. Essas imagens são intercaladas por um letreiro com a inscrição: "O tempo está próximo!" )

 

A Curra da Noiva

 

(A Noiva, entre feliz e hesitante, entra na espelunca. Ela aproxima-se do altar.)

 

Noiva (Séria, feliz.)

 

Eu dou de comer a quem tem fome ... Eu dou de beber a quem tem sede ... Eu conforto os aflitos ...


(Um a um, os fiéis jogadores deixam de rezar para enrabar a Noiva. Eles a tratam como se fosse um monte de carne. Simplesmente a suspendem da cadeira, jogam na mesa, fodem e voltam à oração.)

 

(...)

Os Palhacinhos

 

(Música Conquista, de Claudinho e Buchecha. Entram os Palhacinhos, acompanhados do Coelho. Eles jazem micagens, entregam alguns pirulitos para os presentes. O Coelho está perdido, anda de um lado para outro, tropeça, tromba com os Palhacinhos, que o empurram.)

 

(...)

Juiz

 

Depois de algum tempo, se você sobrevive às coisas e a si mesmo, adquire essa serenidade própria da idade adulta. Você se conhece. Agora que eu me conheço, por exemplo, estou livre de mim pra cometer as piores atrocidades. Hoje sou um homem honrado. Tudo o que dizem não passa de ignorância. Só que eu entendo... o conhecimento verdadeiro é um processo intenso e doloroso, só mesmo uns poucos canalhas podem suportá-lo. (Pausa.) Alguém tem de fazer esse serviço.

 

(O Juiz bate três vezes com o chinelo na mesa.)

 

(...)