Figurino

 

Na encenação contemporânea, o figurino tem papel cada vez mais importante e variado, tornando-se verdadeiramente a "segunda pele do ator" de que falava TAIROV, no começo do século. O fato é que o figurino, sempre presente no ato teatral como signo da personagem e do disfarce, contentou-se por muito tempo com o simples papel de caracterizador encarregado de vestir o ator de acordo com a verossimilhança de uma condição ou de uma situação. Hoje, na representação, o figurino conquista um lugar muito mais ambicioso; multiplica suas funções e se integra ao trabalho de conjunto em cima dos significantes cênicos. Desde que aparece em cena, a vestimenta converte-se em figurino de teatro: põe-se a serviço de efeitos de amplificação, de simplificação, de abstração e de legibilidade.

 

1. Evolução do Figurino

O figurino é, no entanto, tão antigo quanto a representação dos homens no ritual ou no cerimonial, onde o hábito, mais do que em qualquer outro lugar, sempre fez o monge: os sacerdotes gregos de Elêusis, assim como os padres dos mistérios medievais usavam trajes também utilizados no teatro. A história do figurino de teatro está ligada à da moda da vestimenta, mas, ela a amplia e estetiza de maneira considerável. O figurino sempre existiu, e até mesmo de modo demasiado vistoso e excessivo, uma vez que, até a metade do século XVIII, os atores se vestiam da maneira mais suntuosa possível, herdando vestimentas de corte de seu protetor, exibindo seus adornos como sinal exterior de riqueza, sem preocupação com a personagem que deveriam representar. Com o progresso da estética realista, o figurino ganha em precisão mimética tudo o que possuía de riqueza material e de delírio do imaginário.

A partir de meados do século XVIII, na França, reformadores do teatro como DIDEROT e VOLTAIRE, e atrizes e atores como CLAIRON, FAVARD, LEKAIN ou GARRICK garantem a passagem para uma estética mais realista em que o figurino imita o da personagem representada. Ainda com freqüência, ele continua a ser empregado unicamente por seu valor de identificação da personagem, limitando-se a acumular os signos mais característicos e conhecidos por todos. Sua função estética autônoma é muito fraca. O figurino teve que esperar as revoluções do século XX para aprender a situar-se com respeito à encenação como um todo. A par dessa mudança do significante da vestimenta, o teatro reproduz sistemas fixos nos quais cores e formas remetem a um código imutável conhecido pelos especialistas (teatro chinês, Commedia dell'arte* etc.).

 

2. Função do Figurino

Como o traje, o figurino serve primeiro para vestir, pois a nudez, se não é mais, em nossos palcos, um problema estético ou ético, não é assumida com facilidade. O corpo sempre é socializado pelos ornamentos ou pelos efeitos de disfarce ou ocultação, sempre caracterizado por um conjunto de índices sobre a idade, o sexo, a profissão ou classe social. Essa função sianalética do figurino é substituída por um jogo duplo: no interior do sistema da encenação, como uma série de signos ligados entre si por um sistema de figurinos mais ou menos coerente; no exterior da cena, como referência ao nosso mundo, onde os figurinos também têm um sentido. No interior de uma encenação, um figurino é definido a partir da semelhança e da oposição das formas, dos materiais, dos cortes, das cores em relação aos outros figurinos. O que importa é a evolução do figurino no decorrer da representação, o sentido dos contraste, a complementaridade das formas e das cores. O sistema interno dessas relações tem (ou deveria ter) grande coerência, de modo a oferecer ao público a fábula para ser lida. Mas, a relação com a realidade exterior também é muito importante, se a representação pretender nos dizer respeito e permitir uma comparação com o contexto histórico. A escolha do figurino sempre procede de um compromisso e de uma tensão entre a lógica interna e a referência externa: jogos infinitos da variação da indumentária. O olho do espectador deve observar tudo o que está depositado no figurino como portador de signos, como projeção de sistemas sobre um objeto-signo relativamente à ação, ao caráter, à situação, à atmosfera.

Sob esse ponto de vista, o figurino apenas acompanhou (expondo-o como "cartão de visita do ator e da personagem) a evolução da encenação, que passou do mimetismo naturalista à abtração realista (principalmente brechtiana), ao simbolismo dos efeitos de atmosfera, à desconstrução surrealista ou absurda. Presentemente faz-se uma utilização sincrética de todos esses efeitos: tudo é possível, nada é simples. Novamente a evolução se situa entre a identificação rasa da personagem por seu traje e a função autônoma e estética de uma construção da indumentária que só tem contas a prestar a si mesma. A dificuldade está no fato de tomar dinâmico o figurino: fazer com que ele se transforme, que não se esgote após um exame inicial de alguns minutos, mas que "emita" signos por um bom tempo, em função da ação e da evolução das relações actanciais.

 

3. O Figurino e a Encenação

Às vezes se esquecem que o figurino só tem sentido para e sobre um organismo vivo; ele não é apenas, para o ator, um ornamento e uma embalagem exterior, é uma relação com o corpo; ora serve o corpo adaptando-se ao gesto, à marcação, à postura do ator; ora, enclausura o corpo submetendo-o ao peso dos materiais e das formas, prendendo-o num colarinho tão duro, prendendo-o tanto quanto a retórica ou o alexandrino. Desse modo, o figurino participa sucessiva e por vezes simultaneamente, do ser vivo e da coisa inanimada; garante a transmissão entre a interioridade do locutor e a exterioridade do mundo objetal; pois, como observa G. BANU "não é só o figurino que fala, fala também sua relação histórica com o corpo" (1981: 28). Os figurinistas, hoje em dia, cuidam para que o figurino seja ao mesmo tempo matéria sensual para o ator e signo sensível para o espectador. O signo sensível do figurino é sua integração à representação, sua capacidade de funcionar como cenário ambulante, ligado à vida e à palavra. Todas as variações são pertinentes: datação aproximativa, homogeneidade ou defasagens voluntárias, diversidade, riqueza ou pobreza dos materiais. Para o espectador atento, o discurso sobre a ação e a personagem se insere na evolução do sistema da indumentária. Insere-se assim nele, tanto quanto na gestualidade, no movimento ou na entonação, no gestus da obra cênica: "No figurino, tudo o que confunde a clareza dessa relação, contradiz, obscurece ou falsifica o gestus social do espetáculo, é ruim; ao contrário, tudo o que nas formas, nas cores, nas substâncias e na sua disposição ajuda a leitura desse gestus, é bom" (BARTHES, 1964: 53-54).

Esse princípio se limita sobretudo a um tratamento realista da cena; ele não exclui uma certa loucura do figurino: tudo é possível, contanto que continue a ser sistemático, coerente e acessível (que o público possa decifrá-lo em função de seu universo de referência e que ele produza os sentidos que lhe atribuímos ao contemplá-lo). O paradoxo deste figurino no trabalho teatral contemporâneo é o seguinte: ele multiplica suas funções, vai além do mimetismo e da sinalização, coloca em questão as categorias tradicionais demasiado estratificadas (cenário, acessório, maquiagem, máscara, gestualidade etc.); o "bom" figurino é aquele que retrabalha toda a representação a partir de sua flexibilidade significante. É mais fácil apreender estas "doenças" do figurino teatral (hipertrofia da função histórica, estética ou suntuária segundo BARTHES) do que propor uma terapia ou simplesmente uma prática dos efeitos do figurino. Ele sempre oscila entre um "excessivo" e uma subutilização, entre uma embalagem pesada e uma metamorfose espontânea. O figurino está longe de ter dito a sua última palavra e apaixonantes pesquisas indumentárias podem renovar o trabalho cênico. A pesquisa sobre um figurino mínimo, poli valente, "de geometria variável", que recorte e represente o corpo humano, um figurino "fênix", que seja um verdadeiro intermediário entre o corpo e o objeto, está, de fato, bem no cerne da busca atual da encenação. Tal como uma miniencenação volante, o figurino permite conferir novamente ao cenário seu título de nobreza, afixando-o e integrando-o ao corpo do ator. Se o ator fez bem em se desnudar à nossa frente, nos anos sessenta e setenta, é preciso, agora, que ele "se vista de novo", que reconquiste tudo quanto valorize seu corpo, ao parecer escondê-lo, e que entre no reino do figurino.

 

Fonte:

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999. Pág. 168-70