Textocentrismo

Visão "textocentrista" da encenão

 

Ao nos colocarmos no quadro da análise do espetáculo, o espetáculo que contém um texto (seja ele ou não preexistente à representação) devemos novamente colocar a questão das relações entre o texto, o que nos leva a questionar se a representação decorre ou não do texto, e da leitura que podemos fazer disso. Porém, esta comparação ou confronto entre o texto e a representação é um hábito funesto que leva a pensar que a encenação é uma atualização, uma manifestação ou uma concretização de elementos já contidos no texto. O que talvez seja verdade em uma perspectiva diacrônica do estudo da gênese da encenação em decorrência de um estudo, pelo encenador do texto dramático destinado a ser encenado. Não o é obrigatoriamente em uma perspectiva sincrônica, já que o espectador recebe o texto e os sinais extratextuais ao mesmo tempo, sem que um seja necessariamente anterior e superior ao outro. Podemos de fato imaginar um dispositivo de encenação elaborado sem que o texto seja conhecido e que tal texto tenha sido escolhido apenas na última hora, uma vez definida a encenação: assim procedem Robert Wilson e muitos outros artistas da cena.

O problema não é saber de modo absoluto qual é o elemento primeiro - o texto ou a cena -, pois é claro que as respostas variam segundo os momentos históricos encarados; o problema é saber se em um espetáculo que contém um texto (do qual não se sabe se ele preexistia ou não ao trabalho teatral) um elemento decorre do outro e precisa assim do outro para se determinar.

É raro, para dizer a verdade, encontrar a tese segundo a qual o texto decorreria do palco utilizado e da atuação e, no entanto, seria fácil mostrar que a escrita dos textos é enormemente influenciada pela prática cênica de uma época, pelo que ela sabe fazer teatralmente.

É frequente, pelo contrário, considerar-se que a encenação decorre diretamente do texto: decorre no sentido em que a cena atualiza elementos contidos no texto. É até mesmo esse, no fundo, o verdadeiro sentido da expressão "encenar um texto": coloca-se em cena elementos que se acabou de extrair do texto, depois de tê-lo lido. O texto é então concebido como uma reserva, ou até mesmo o depositário do sentido que a representação tem como missão extrair e expressar como se extrai o suco (cênico) da cenoura (textual).

Tal visão é tanto a dos filólogos - para quem o texto dramático é tudo e a cena uma simples ilustração, um assunto retórico para "temperar" o texto - quanto a de numerosos teóricos de teatro, semiólogos incluídos. Limitemo-nos a algumas citações tiradas destes últimos:

 

  • Anne Ubersteld fala, por exemplo, de "núcleos de teatralidade", de "matrizes textuais da representatividade", de buracos do texto que serão preenchidos pela encenação'.
  • A. Serpieri se interessa pela virtualidade cênica do texto dramático.
  • E. Fischer-Lichte vê a teoria como "estudos sistemáticos das relações possíveis entre o texto escrito e a representação"; segundo ela, a representação deve ser entendida como o interpretante para significações possíveis do drama que está na sua base.
  • Keir Elam se pergunta "de que maneiras o texto dramático e o texto da representação são parentes e quais são os pontos de contato entre eles?"
  • H. Turk sonha encontrar "a articulação que falta entre a semiologia do teatro e a poética do drama, o que facilitaria os resultados um  para o outro”.

 

Todas essas posições são filológicas no sentido em que a representação necessita do texto para existir e para ser interpretado. O texto não é descrito em sua enunciação cênica, ou seja, como prática da cena, mas como referência absoluta e imutável, como pivô de toda encenação. Ao mesmo tempo, o texto é declarado incompleto, já que necessita da representação para tornar seu sentido. Tais posições filológicas têm todas em comum uma visão normativa e derivativa da encenação: esta não pode ser arbitrária, ela deve servir o texto e se justificar para uma leitura correta do texto dramático. Pressupõem-se que o texto e a cena estão ligados e que foram concebidos um em função do outro: o texto em vista de uma futura encenação, ou pelo menos de um modo dado de atuação; a cena pensando naquilo que o texto sugere para a sua espacialização.

 

PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. Trad. Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo: Perspectiva: 2011. Pág. 189-191